Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), o professor Luis Fernando Cerri atua no Departamento de História da universidade Estadual de Ponta Grossa, é membro ativo da Red de Especialistas em Docencia, Difusion e Investigación en Enseñanza de la História (REDDIEH – México) e é presidente da Associação Brasileira de Ensino de História-ABEH (mandato 2019-2020). Para o site Elos, o especialista discute o ensino de Política nas escolas brasileiras, o atual debate sobre a Ditadura Militar e a atenção que o discurso do “Escola sem Partido” vem ocupando no cenário nacional. Acompanhe a entrevista:
Elos: Como o ensino da História pode ajudar na formação do pensamento crítico do aluno?
Professor Luis Fernando Cerri: O ensino da História amplia a cultura histórica, ou seja, dá ao aluno o acesso pensado, refletido e raciocinado a outros tempos e outros espaços. A partir do momento que este aluno começa a pensar como a vida se desenvolvia em outros tempos, ele tem condições de fazer um julgamento crítico da sua própria vida, analisando a sua realidade com um olhar mais amplo. Entretanto, o resultado deste processo dá uma liberdade muito grande para o aluno que, ao pensar criticamente, é capaz de repensar a sua identidade de formas que podem não ser aquilo que nós, professores, gostaríamos. Portanto, a formação do pensamento crítico nunca pode ser a imposição de determinados padrões. Há alguns limites, por exemplo, nós não podemos permitir a construção de pensamentos que sejam destrutivos.
Recentemente, o ex-ministro da Educação do governo Bolsonaro, Ricardo Vélez Rodríguez, disse querer substituir os livros didáticos de História por livros que contassem somente “a verdade” sobre a ditadura militar. Por sua vez, o atual ministro, Abraham Weintraub, também já se declarou contra o “marxismo cultural”. Quais as consequências da omissão e/ou esquecimento de fatos históricos pelo ensino escolar?
É muito interessante nós considerarmos que os mesmos grupos de extrema-direita que vêm falando que nas escolas se desenvolve uma doutrinação, são grupos que querem adotar medidas, como esta do ex-ministro Vélez, de censurar o ensino da História. A pergunta é: será que a verdade dele é a verdade, mesmo? Porque o que ele diz sobre o regime militar não é uma verdade embasada cientificamente. E, mesmo no campo da ciência, nós ainda temos algumas controvérsias. Não há controvérsia sobre o fato de que foi um golpe, uma ditadura – isto já está consolidado na discussão dos pesquisadores. Então, o que um ministro como este pretende, ou pretendia (parece que o novo ministro não é muito diferente), é estabelecer uma doutrinação de direita. É triste nós vermos isto. Na educação, ao invés de verificarmos as falhas que temos no processo de ensino para que os alunos tenham uma visão melhor, estamos buscando destruir um ponto de vista e preservar o outro. Então, se o ministro está falando de verdade como um item de fé, ele não está pensando em formação do pensamento crítico. Para tal, nós precisamos considerar o debate e o estágio atual do conhecimento histórico. São duas coisas fundamentais no ensino da História.
Qual é a melhor forma de desenvolver o interesse dos alunos pela política?
Bem, a melhor forma de desenvolver esse interesse não é como se está sendo feito hoje pelos movimentos de direita, que são dominantes no país. O jeito deles é este: despertar a indignação e propor soluções imediatistas, simplistas e, geralmente, violentas. Não é este o caminho, porque este é o caminho para a destruição da política e da democracia. A melhor alternativa, primeiramente, é ensinar que se deve respeitar todas as posições, inclusive a da direita, mas, criticando as perspectivas da extrema-direita que vão no sentido da destruição da democracia. É pensar que o aluno, na escola, não está se preparando para a vida – ele já está vivendo. Então, nós devemos pensar, cada vez mais, em estruturas de participação do aluno na gestão da escola, isto é, na construção de elementos para uma atividade política. Se o aluno aprendesse, por exemplo, como se faz um debate político em alto nível, ou se nós pudéssemos fazer com que ele entendesse, a fundo, como funciona o processo democrático. Estes são elementos fundamentais da política que nós não temos acesso na educação brasileira de hoje.
Como o professor de História ou Política pode evitar que o Estado o censure em sala de aula?
O professor deve ter clareza sobre quais são as garantias que a lei oferece a ele. Logicamente, estamos pensando em um pressuposto de que a lei seja respeitada. Em alguns casos, isto [a lei] tem sido desconsiderado completamente, o que nos deixa bastante preocupados. Então, o primeiro ponto é garantir a democracia, para que o professor não seja calado em sala de aula. A partir disto, ele tem uma série de direitos. Por exemplo, o professor não é obrigado a ser filmado ou gravado sem a sua autorização. Este professor tem direito à imagem e as pessoas não podem divulgar esta imagem em redes sociais, porque isto constitui crime. Nestes casos, ele deve procurar as instituições de apoio e processar quem faz isso. E, principalmente, estar ciente da sua garantia constitucional de liberdade de pensamento e de ensino. Se o professor não promover ativamente estas questões, ele pode ficar cada vez mais acuado e isso é uma situação péssima, porque ninguém consegue dar uma boa aula se tiver pessoas policiando, ou se ele mesmo estiver se policiando, para não ser perseguido.
A popularização do projeto “Escola sem Partido”, que visa retirar conteúdo do currículo escolar, influencia na qualidade do ensino? Por quê?
Este projeto tem um significado muito ambíguo. Por um lado, eles dizem: “nós queremos que sejam ensinados todos os pontos de vista”. Ora, com isso, ninguém é capaz de discordar. Eles dizem, “nós queremos que os professores não façam propaganda política ou partidária na sala de aula”. Todos concordam. O problema é que, ao avaliar as razões reais, que tipo de ideias eles apoiam e o que divulgam no site do projeto, nós percebemos que não é nada disso.
O que eles querem, é que seja colocada, à ferro e fogo, a ideologia política conservadora de direita dentro da sala de aula, não importando se esta tem fundamento científico ou cultural. O projeto quer que as opiniões de seus idealizadores entrem na sala de aula e não é por aí. Um professor responsável, que zela pela qualidade do ensino e tem uma perspectiva ética, está preocupado em trabalhar não com o que lhe agrada, mas em ensinar aquilo como é. Às vezes, a minha opinião, enquanto professor, combina com o que a ciência conclui – e outras vezes, não – mas a ciência não está certa só quando ela concorda comigo.
Levando esta ideia do “Escola sem Partido” adiante, nós poderíamos supor que o professor ensinará que a Terra é esférica e também que a Terra é plana; não dá para colocar no mesmo patamar um conhecimento científico, estabelecido há milênios, com um conhecimento esquizofrênico inventado por um grupo qualquer de pessoas. Não dá para colocar um conhecimento científico sobre a Biologia, comparado com um conhecimento religioso sobre a evolução das espécies, por exemplo. Então, a grande questão é que não se colocam os dois lados de uma questão, se um destes lados não tem uma fundamentação que o sustente.
Mais do que se preocupar com o ensino de vários lados de um fato, o “Escola sem Partido” quer, basicamente, perseguir professores de esquerda ou até mesmo, que estejam apenas seguindo elementos da ciência que sejam incômodos para os conservadores. Além de todos estes agravantes, este projeto faz um imenso trabalho para tornar a carreira docente menos atrativa, porque o profissional já tem um salário reduzido, uma formação de ensino superior bastante complicada e condições de trabalho difíceis, e ainda terá o “Escola sem Partido” o ameaçando a qualquer opinião que ele der.
Por fim, qual é a importância da formação do pensamento crítico do aluno durante os anos escolares?
O pensamento crítico do aluno é um dos objetivos fundamentais da educação. É com o pensamento crítico que nós trabalhamos a formação da identidade, o estabelecimento de quem é este aluno, onde ele está no mundo, qual é o seu passado e quais são as características do presente. A partir deste “estar no mundo”, de saber o que é o pensamento e entender o seu lugar, é que o aluno é capaz de pensar por si e, ao longo deste processo, delinear a sua própria ideologia.
Entrevista realizada pelos alunos do 4º ano de Jornalismo (UEPG), Rafaela Martins e Daniel Lisboa.