“Tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. Como é que acaba com isso? Tem que trabalhar, meu Deus do céu. É crime trabalhar?”. Essa fala absurda é do atual presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido) em declaração dada à jornalistas no dia 29 de março de 2020 após voltar de um tour pela cidade de Brasília. O presidente aproveitou a divulgação dos dedos do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos a respeito do aumento de denúncias de violência contra a mulher durante a pandemia para criticar o isolamento social como medida de combate ao COVID-19.
Ainda que absurda, a ideia de relacionar a violência doméstica às privações que vivenciamos por causa do coronavírus, não é exclusividade do palácio do planalto. René Simões, ex-treinador da seleção brasileira de futebol feminino, em entrevista à Rádio Central, de Campinas, no dia 26 de junho de 2020, tentou defender a volta das partidas de futebol como uma medida para evitar agressões de maridos contra suas esposas. “Vamos discutir o futebol como fator social para ajudar as pessoas que estão em casa enlouquecendo. Eu tenho amigos aqui que já se separaram, outros já bateram na mulher, outros batem nos filhos. Estão enlouquecendo. Então, se colocar futebol, pode ser que ajude em alguma coisa”, disse o futebolista, que atualmente é comentarista da TV Bandeirantes no programa carioca Os donos da bola.
Do jeito posto por Bolsonaro e René, antes da pandemia atingir em cheio o mundo e, em especial, o Brasil, a violência doméstica contra mulheres parece nunca ter existido ou que a solução seria tão simples quanto ter um marido com trabalho e futebol na TV. A pergunta é: em que planeta eles moravam antes disso tudo acontecer? A violência doméstica contra mulheres é um antigo problema de saúde pública global. A falta de trabalho e tantas outras questões podem ser gatilhos para a violência, mas nunca a razão. As mulheres sofrem agressões físicas e abusos sexuais e psicológicos porque vivemos em uma sociedade gestada, parida e criada pelo patriarcado.
A pandemia da violência contra mulheres no Brasil
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde elevou ao status de pandemia a contaminação do novo coronavírus. Alguns dias depois, os estados brasileiros passaram a adotar o isolamento social como medida combativa. Isso significou a convivência ininterrupta entre familiares e o agravamento na violência doméstica. Longe de querer reafirmar o discurso contrário ao isolamento, mas é em casa que as mulheres mais sofrem agressões físicas, psicológicas e sexuais.
Segundo dados da pesquisa Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, publicada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 16 milhões de mulheres e adolescentes brasileiras com 16 anos ou mais sofreram algum tipo de violência ao longo do ano de 2018. Além disso, na pesquisa, a promotora de justiça Valéria Scarance identificou, ao entrevistar 1092 mulheres de 16 anos ou mais, de 130 Municípios e de todas as regiões do país, que 76,4% das vítimas relataram conhecer o seu agressor, sendo 39% parceiros e ex-parceiros e 14,6% parentes. Em 2019, como demonstram os dados da pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil, 30,4% dos feminicídios aconteceram dentro de casa, sendo as mulheres pretas as mais assassinadas.
Com a pandemia e o isolamento necessário para conter o contágio da doença, os números já alarmantes de violência doméstica contra as mulheres subiram. As denúncias pela Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) nos quatro primeiros meses de 2020 aumentaram em 14,1% em relação a 2019, segundo o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Só no mês de abril o comparativo revelou acréscimo de 37,58%. Além disso, dados do relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que os casos de feminicídios entre março e abril de 2020 cresceram 22,2% em relação ao mesmo período de 2019. O que é ainda mais assustador é o fato de que as subnotificações em caso de agressão, assassinado e abuso sofridos por mulheres não é uma novidade e que provavelmente mais mulheres estejam vulneráveis e vivendo na violência.
Esses dados iluminam duas questões importantes sobre a violência contra as mulheres, principalmente em momento de pandemia: esse é um problema complexo que atinge camadas sociais e etnicas de maneiras diferentes; e o ambiente doméstico continua sendo o principal cenário dessa violência. Enclausuradas em suas casas e sobrecarregadas com o acúmulo de funções, as mulheres viram presas fáceis para os seus agressores.
A ideia de que homens agridem mais as mulheres durante a pandemia porque estão passando por dificuldade financeira ou porque o tédio de não ter futebol para assistir os tornam mais violentos é negligente e esquece que as mulheres também precisam encarar duras realidades no isolamento. Aqui, o destaque foi a violência doméstica, mas a pandemia afetou a vida das mulheres em diferentes instâncias. Segundo estudo do neuropsicólogo Antônio de Pádua Serafim, elas tiveram mais problemas relacionados à saúde mental e foram as mais atingidas no mercado de trabalho, com a menor participação em 30 anos, segundo o IBGE. Não precisamos de maridos com emprego ou entretidos, precisamos de boas políticas públicas que garantam o direito à liberdade, proteção e dignidade humana.