Coluna: Volta o eleitor arrependido… e que seja acolhido!

Na série de televisão Chaves, sobre um menino de rua que morava em um barril, em um bairro muito simples, o protagonista entoava os seguintes versos, que já fazem parte da cultura popular brasileira:

“Volta o cão arrependido

Com suas orelhas tão fartas

Com seu osso roído

E com o rabo entre as patas”

Nesta semana, li estas mesmas palavras em uma rede social, mas noutro contexto, sobre a imagem de um suposto eleitor do Presidente Jair Bolsonaro em 2018, comparando-o (o eleitor, não o governante) ao tal “cão arrependido”. Para aqueles que, assim como eu, são anti-bolsonaristas, a comparação pode se fazer engraçada, inclusive fácil. Afinal, para os eleitores do “lado de cá”, animalizar – seja como cão, ou mesmo gado – o cidadão que votou em um candidato preconceituoso, a favor da tortura e com uma história política medíocre, é um processo quase automático. O problema é que, por incrível que pareça, nem todo eleitor que votou em Bolsonaro reflete o perfil “tiozão ignorante do churrasco” ou “homem branco milionário”. Ou mesmo “Bruxa do 71”.

Sim, a pesquisa do Datafolha de 2018 mostra que o eleitorado de Bolsonaro naquelas eleições era composto, majoritariamente, de homens (55%), pessoas entre 25 a 44 anos (44%), com ensino médio completo (47%), renda familiar de 2 a 5 salários mínimos (43%) e morador da região sudeste (48%). Mas é preciso ir além da simples explicação de que os votantes de Bolsonaro o escolheram porque se enxergavam no atual Presidente. Há aqueles que, sem dúvida, o fizeram por isso, fenômeno facilitado pelo sistema presidencialista; mas, por outro lado, seus eleitores também foram mulheres (45%), pessoas com 45 anos ou mais (40%), com apenas o ensino fundamental completo ou menos (22%), renda familiar de até 2 salários mínimos (28%) e moradores do Centro-oeste, Nordeste ou Norte (31%). Generalizar qualquer grupo é desconsiderar realidades diversas e vivências múltiplas. Noutras palavras, mesmo a Dona Florinda poderia votar de modo inesperado, geralmente por conta de uma piora em sua condição social e econômica.

Portanto, tomem este eleitor minoritário de Bolsonaro – mulher adulta, pobre, sem estudo e moradora de regiões menos favorecidas – e enxerguem, sob sua ótica, os seguintes fatos: crise econômica global de 2008, e que aportou de vez no Brasil a partir de 2014; inflação acumulada (2015-16) de 16,96%; reportagens de uma mídia viciada nos feitos do, então herói, Sérgio Moro; impeachment/golpe de Dilma, em 2016; e prisão de Luís Inácio Lula da Silva, em 2018. Consequentemente, a demonização do PT e dos seus feitos, cujos resultados foram consideravelmente menos duradouros do que se esperava, ocorreu em paralelo à ascensão de Jair Bolsonaro, que se apresentava como o oposto da esquerda – e, mais ainda, como “novidade”.

As aspas se justificam aos que alegam não haver inovação no político do “baixo clero” que estava há quase três décadas no sistema, tendo colocado toda a família na política. Concordo em parte, pois me parece inegável que Bolsonaro é, sim, inovador. Que outro político zombaria de um infectado por Covid com falta de ar? Que se livraria de suas responsabilidades, dizendo não ser coveiro? Que exporia um discurso meritocrático de morte, declarando em plena pandemia que “o Brasil não pode parar”? Mas suas inovações terminam aqui, pois, nos últimos meses, algo infelizmente comum na política vem se amontoando neste (des)governo: escândalos de corrupção. Propina nas vacinas e inclusão do próprio Jair Bolsonaro no esquema das rachadinhas se somam ao Orçamento Paralelo de 3 bilhões de reais, às retificações retroativas de licenças ambientais e, claro, à inesquecível tentativa de interferência na Polícia Federal, dentre outros episódios.

Diante de tudo isso, Bolsonaro vem perdendo popularidade e apoio, inclusive entre os beneficiados pelo auxílio emergencial, em especial, vejam só… mulheres nordestinas (PoderData, jun. 2021). Ainda assim, existe a possibilidade de, com o aumento da vacinação, a economia retomar o crescimento e, com isso, a balança pender novamente em favor do Presidente. É preciso evitar este cenário (de apoio a Bolsonaro, não da retomada econômica, por óbvio) a todo custo. Para tanto, devemos compreender os eleitores arrependidos – bem como os que votaram em branco ou anularam seus votos – e, inclusive, acolhê-los. De outro modo, o abismo já existente entre os “do lado de lá” e os “do lado de cá” aumentará ainda mais, o que é prejudicial para qualquer democracia. Na política, o conflito é impossível de ser eliminado, mas ele deve existir entre adversários legítimos, não entre inimigos a se aniquilarem. E quero acreditar que nenhum defensor da democracia seria favorável a impedir que cidadãos que pensam de modo diferente fossem impedidos de votar.

Todavia, a compreensão da realidade alheia, e mesmo o acolhimento do outro, não significa “passar pano” para quem votou em Bolsonaro, mas entender que a democracia é feita – e, até mesmo, depende – da heterogeneidade. Contrariamente, há pessoas que se eximem em redes sociais da situação atual, já que não teriam culpa por não terem votado em Bolsonaro. Eu, inclusive, já fiz isso, de modo que o presente texto é, em certa medida, uma autocrítica. Mas, então, a democracia se resume às eleições, e os culpados por “tudo isso aí” são apenas os eleitores do Bolsonaro? O cidadão vota e apenas torce para que o eleito cumpra suas promessas, podendo ser responsabilizado por tudo o que o político faz ou deixa de fazer? Faça um retrospecto dos seus votos, e se pergunte: seus eleitos sempre fizeram o prometido? Culpar o eleitor não é o mesmo que culpar o governante, que é o responsável direto pela política institucional democrática. Até porque, caso ele não a cumpra, todos os cidadãos – votantes ou não do eleito – têm não apenas o direito, mas o dever de cobrá-lo.

Por outro lado, é preciso traçar uma linha que separe os defensores do regime democrático daqueles que os atacam. E me parece que, diante das denúncias de corrupção e do discurso meritocrático de morte, a continuidade do apoio a este (des)governo genocida é exatamente a tal linha demarcatória. A pesquisa CNT/MDA, de julho de 2021, mostra que o Presidente Bolsonaro alcançou desaprovação recorde de 62,5%. Nesta ampla maioria, além dos “democratas raiz”, há também pessoas que elegeram Bolsonaro, que anularam o voto ou que apertaram o branco na urna eletrônica. Ou seja, há milhares de “Donas Florindas”, “Professores Girafales” e “Seus Madrugas”. Como fazer com que este grupo, tão heterogêneo, consiga mandar um uníssono FORA BOLSONARO nas próximas eleições? Ou, melhor ainda, construa uma legitimidade popular tal que fundamente o impeachment do Presidente? Bom, o primeiro passo seria atualizar os versos do começo deste texto. Segue minha sugestão:

“Volta o eleitor arrependido

Com suas (justas) exigências tão fartas

Com seu orgulho roído

E com o seu título que ele quer mandar às favas

Mas não faça isso, cidadão compadecido

Venha para o lado da democracia

Aqui não há preconceito ou inimigo

Há, sim, a construção coletiva de uma boa utopia”

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