Festival Nacional de Teatro inaugura reflexão sobre a condição humana

Direitos das profissionais do sexo e analfabetismo emocional são temas de peças do festival

Anteriormente jurada e debatedora do festival, Guta Stresser 
retorna como atriz. Foto: Victor Schinato

 

A 52° edição do Festival Nacional de Teatro (Fenata) iniciou no dia 7. A programação principal conta com 37 espetáculos, com companhias de teatro do Brasil todo e artistas que, em sua subjetividade, muitas vezes tratam de temas que tocam nos direitos humanos.

O Fenata é organizado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) em parceria com a Fundação de Apoio a UEPG (FAUEPG) e possui apoio de órgãos públicos como as secretarias municipais de Turismo e Cultura, o Ministério da Cultura e é também participante da Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet).

No segundo dia do evento, 8 de novembro, foram apresentadas no Cine-Teatro Ópera as peças “Meretrizes”, do Coletivo Gompa de Porto Alegre-RS; e “Os Analfabetos”, da Cia À Curitibana Portátil, de Curitiba. Além disso, também foram performadas “Mortes Ardentes, Paixões Enterradas” e “Iepe”, na Estação Saudade e no Auditório da UEPG Central.

As artistas cedem o espaço no palco para que as mulheres entrevistadas
possam responder perguntas. Foto: Victor Schinato

 

“Meretrizes”: um documentário ao vivo sobre a prostituição no Brasil

O espetáculo “Meretrizes”, do Coletivo Gompa de Porto Alegre, é uma coletânea de relatos, entrevistas, filmagens e encenações que remontam às experiências coletivas de prostitutas no país. Liane Venturella assume o papel de uma cafetina que, no palco trajado de casa de shows, performa um documentário ao vivo juntamente com Catarina Domenici no piano.

Liane inicia a peça contando sua história de vida, que segundo ela, pouco importa se é verdade ou não. Na fala da artista, ela retoma o passado quando foi para Londres e não tinha renda suficiente para pagar curso de atuação e de inglês ao mesmo tempo, situação que motivou Liane a ingressar na prostituição. História semelhante aconteceu com Catarina. Como mencionado pelas artistas, a veracidade é insignificante, porque a história aconteceu repetidas vezes, com mulheres o suficiente, para que tenha se tornado uma suposta verdade.

A partir da projeção de vídeos gravados pela produção do Coletivo Gompa, profissionais do sexo podem expor suas verdades e vivências, sem romantizações ou demonizações, como aponta Liane. Para as mulheres que escolheram não se identificar, foram criadas linhas de texto que, através da encenação e música, podem exemplificar as vivências gerais de todas aquelas que trabalham com sexo.

Ao final do espetáculo, o teatro se mescla a uma palestra e mulheres que participaram dos vídeos podem responder a dúvidas do público, sejam elas sobre o roteiro, produção ou a vida das mulheres que trabalham com sexo.

Jane Felipe Beltrão e Andrea Ferreira Bispo, pesquisadoras sobre o direito de trabalhadoras sexuais, em um ensaio para a revista Saúde em Debate, afirmam que atualmente existem três reações possíveis ao trabalho sexual: o proibicionismo; o abolicionismo; e a regulamentarismo. Países como Tailândia e Irã assumem uma postura proibicionista, com pena monetária ou física em casos de infração. O Brasil se enquadra como abolicionista, na ótica de que prostitutas ocupam um local de vítima, não proibindo o exercício da profissão, mas cerceando ações que colaborem para a prostituição. A regulamentação presume a criação de políticas públicas que protejam os direitos constitucionais e a segurança de profissionais do sexo.

De um ponto de vista penal, o trabalho sexual não é crime. É crime apenas ter uma casa de prostituição, induzir uma pessoa a se prostituir ou viver às custas da prostituição de outra pessoa. Todos esses crimes buscam, em última instância, proteger os profissionais do sexo contra abusos de terceiros.

Desde 2002, o Ministério do Trabalho reconhece o trabalho sexual como ocupação. É o código 5198 da Classificação Brasileira de Ocupações, intitulada “profissionais do sexo”. No entanto, vale lembrar que esses profissionais não dispõem de nenhum direito trabalhista ou previdenciário, porque não há uma lei que regulamente a profissão.

A construção da peça conta com apenas lanternas seguradas pelos atores 
e luz negra. Foto: Victor Schinato

 

“Os Analfabetos”: Espetáculo aborda a incomunicabilidade e os direitos humanos relacionados à expressão emocional

A peça “Os Analfabetos”, dirigida por Adriano Petermann e escrita por Paula Goja, é um drama psicológico que se propõe a explorar temas relevantes aos direitos humanos, como o respeito mútuo à subjetividade de outros indivíduos.

A história gira em torno de seis personagens que, apesar de diferentes entre si, compartilham um desafio comum: a luta para equilibrar a necessidade de adequação social com o desejo de expressar emoções genuínas. Inspirado pela obra do cineasta sueco Ingmar Bergman, o texto utiliza referências diretas e indiretas à incomunicabilidade emocional e ao isolamento interno que muitas vezes define as relações interpessoais. Elementos das obras da escritora francesa Virginie Despentes e do dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues são incorporados, criando uma narrativa que aborda a complexidade emocional dos personagens de maneira crua e honesta.

“Os Analfabetos” expõe a incomunicabilidade como uma barreira invisível, mas real, que impede os indivíduos de se entenderem plenamente e de serem compreendidos em sua totalidade. Os personagens se veem obrigados a usar “máscaras” para desempenhar papéis sociais, uma prática que, conforme ilustrado no espetáculo, pode levar a um distanciamento da própria identidade e a um aumento do sofrimento psíquico. Esse aspecto dialoga diretamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que assegura a liberdade de pensamento e expressão.

Em muitos aspectos, “Os Analfabetos” defende a ideia de que as pessoas têm o direito de ser autênticas e de expressar suas vulnerabilidades, sem medo de julgamento ou represálias. No contexto da peça, esse direito é frequentemente negligenciado pela sociedade, que exige de cada pessoa uma atuação específica e controlada. A criação de um ambiente seguro onde esses sentimentos podem ser externalizados é fundamental para o fortalecimento das relações humanas e para o reconhecimento da diversidade emocional de cada indivíduo. Os personagens de “Os Analfabetos” questionam esse paradigma ao explorar suas próprias limitações e carências, levantando a questão: até que ponto somos capazes de enxergar o outro além da máscara social?

Ao focar no analfabetismo sentimental, “Os Analfabetos” lembra o público de que a empatia é uma habilidade essencial para o fortalecimento das relações humanas e para a construção de uma sociedade inclusiva.

Mariana, personagem de Guta Stresser, é a peça central da trama.
Foto: Victor Schinato

 

Por Julio Maroneze, Maria Gallinea e Victor Schinato

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