Livro de Lucas Santana é um grito contra a repressão e foi contemplado nos editais da Lei Paulo Gustavo de Pernambuco, por meio da Secretaria de Cultura do Estado
A literatura fantástica brasileira ganha novo fôlego com Sangue Raro, obra de estreia de Lucas Santana, autore não binárie pernambucane que transforma uma distopia urbana em um grito poético contra a repressão, a marginalização e a violência estatal. Ao construir um mundo onde pessoas com “sangue raro” são perseguidas e exploradas, Santana cria uma potente metáfora sobre o controle social, o autoritarismo e a resistência das minorias. O livro é resultado de um projeto contemplado nos editais da Lei Paulo Gustavo de Pernambuco, realizado através da Secretaria de Cultura do Estado com recursos da Lei Paulo Gustavo, direcionada pelo Ministério da Cultura — um marco que reforça o papel da política pública no incentivo à produção artística comprometida com a diversidade e a crítica social.
Na entrevista concedida para o Elos, Santana compartilhou como as ditaduras latino-americanas, a manipulação religiosa e as práticas contemporâneas de higienização social influenciaram diretamente sua ficção. “O sistema discrimina essas pessoas, mas ao mesmo tempo precisa delas. Isso é o que acontece com as minorias no capitalismo: somos bode expiatório e matéria-prima”, elucida.
Fantasia distópica como crítica à opressão estrutural
Sangue Raro se passa em um Brasil alternativo onde um Estado militarizado utiliza a mídia e a religião para construir um imaginário hostil contra indivíduos com um sangue especial — raro, precioso e ao mesmo tempo temido. A perseguição promovida pelo governo não é apenas pública: ela acontece nos bastidores, com sequestros, experimentações e tortura. Esses corpos, marcados como perigosos, são também os que fornecem a força vital para o próprio regime.
Essa ambivalência — rejeição e exploração — reflete dinâmicas vividas por pessoas negras, LGBTQIAP+ e periféricas na sociedade brasileira. “A metáfora do sangue raro serve para falar do que fazem com a gente: marginalizam, mas nos usam para sustentar o sistema”, afirma o autore.
Uma história marcada por dor, poder e resistência
No centro da narrativa está Caetano, morador do Morro da Conceição, em Recife, que desde a adolescência sente algo estranho crescer dentro de si — uma energia inominável que se espalha pelo corpo como uma febre silenciosa. Ele é um sangue-raro: seu sangue possui habilidades especiais, como localizar pessoas, tornando-se alvo do Estado. Em meio a uma ditadura que busca exterminar bruxos e sangue-raros em nome da “purificação nacional”, Caetano é capturado e utilizado como instrumento do governo, forçado a ajudar na perseguição de opositores políticos.
Após passar dez anos preso, ele consegue fugir. Do lado de fora, encontra um Brasil colapsado, em que o exército já não governa e o povo foi deixado à deriva — cidades alagadas, a natureza em fúria, o medo ainda presente. Ele cruza o caminho de Jorge, um bruxo que busca desesperadamente sua filha desaparecida — outra sangue-raro, poderosa como ele. Juntos, os dois encaram os escombros de um país destruído pela opressão, tentando decidir se vale a pena reconstruir ou apenas vingar. Caetano precisa confrontar sua culpa, seu passado e o próprio corpo — um corpo que o sistema tentou transformar em arma, mas que ele agora tenta reivindicar como território de luta e reexistência.
Corpo, território e divindade: interseções políticas e existenciais
O livro também propõe uma reflexão sensível sobre o corpo como campo de disputa. “O corpo da gente é um território”, diz Santana. “Querem dizer que corpo pode existir, que corpo tem valor. Isso vale para pessoas LGBTQIAP+, mulheres e pessoas negras. Nosso corpo está sempre em disputa, como a própria América Latina.”
A repressão descrita na narrativa se entrelaça com as estratégias de controle exercidas pela religião institucionalizada, especialmente em comunidades vulneráveis. A crítica à moralidade imposta aparece de forma contundente. “Igrejas se infiltram onde o Estado falhou, e oprimem os corpos que deveriam acolher. Isso é ferramenta de dominação”, comenta.
Carnaval como resistência: arte e comunidade contra o autoritarismo
Em contraste com a violência e a opressão, Sangue Raro exalta a arte popular como forma de resistência e sobrevivência. A presença do carnaval, especialmente o de rua nordestino, simboliza a força coletiva. “No livro, o alaúça é símbolo de poder popular. O carnaval aqui é democrático. É um lugar onde corpos dissidentes podem existir com liberdade.”
Lucas enxerga na arte um espaço de reconstrução da identidade e de acolhimento. “Quando eu era adolescente, não via personagens LGBTQIAP+ em livros ou filmes. A literatura precisa oferecer esses espelhos. Quero que leitores se sintam acolhidos e empoderados.”
Entre a ficção e o espelho: o Recife de Sangue Raro é distopia ou realidade encenada?
A distopia apresentada em Sangue Raro não soa distante — ao contrário, evoca um Brasil que já se reconhece em muitos aspectos da narrativa. O Recife criado por Lucas Santana, embora fantástico, ecoa elementos concretos da sociedade brasileira: repressão estatal, controle religioso, exclusão de corpos dissidentes e desigualdade estrutural. A fantasia torna-se, assim, uma lente de aumento sobre vivências reais de populações historicamente marginalizadas.
A perseguição aos sangue-raros, que possuem um sangue precioso e temido, ressoa como metáfora para o modo como o Estado lida com pessoas negras, LGBTQIAP+ e periféricas — rejeitando suas existências enquanto extrai delas força e produção. A distopia do livro se aproxima perigosamente da realidade: se não há ainda um regime declarado, há políticas e discursos que operam com lógica semelhante, usando o medo como ferramenta de dominação.
Ao colocar em cena um Brasil colapsado e um povo deixado à deriva, a narrativa convida à reflexão sobre o presente. As tensões que o livro expõe — entre poder e resistência, entre religião e controle, entre arte e sobrevivência — já fazem parte do cotidiano de muitas comunidades. Nesse sentido, Sangue Raro denuncia, mas também convoca: aponta para a importância da coletividade, da arte como refúgio e da resistência como forma de luta.
Representatividade e esperança para juventudes marginalizadas
O protagonista de Sangue Raro, Caetano, vive um apagamento forçado de sua identidade. Antes mesmo de descobrir seu sangue raro, ele já enfrentava exclusão por ser LGBTQIAP+. “A opressão começa cedo. Aprendemos a disfarçar quem somos com medo da violência”, explica o autore.
Mas o livro também é sobre pertencimento. “Mesmo em um mundo que te nega, há caminhos de afeto e resistência. Espero que quem já sofreu exclusão leia o livro e sinta que existe um lugar seguro para si”.
Com Sangue Raro, Lucas Santana entrega uma fantasia distópica que não apenas emociona e entretém, mas também questiona, denuncia e acolhe. Sua escrita evoca um Brasil real por meio do fantástico — um país marcado por desigualdades e resistências, onde a imaginação é ferramenta de denúncia e esperança.
É uma obra que mostra que, mesmo quando tudo ao redor tenta apagar quem somos, há força na arte, na coletividade e na reinvenção de si mesmo. O reconhecimento através da Lei Paulo Gustavo amplia ainda mais o alcance desta narrativa transformadora, destacando a importância de políticas culturais que valorizam vozes dissidentes e histórias que desafiam o status quo.
Por Maria Gallinea