Rede Periferia Brasileira de Letras já mapeou 292 coletivos em nove estados e no DF; 96% atuam com direitos sociais e 65% priorizam a pauta antirracista em territórios de maioria negra
Por: Maria Gallinea

No Brasil contemporâneo, onde as desigualdades estruturais ainda determinam o acesso à cultura, a literatura periférica emerge como um movimento coletivo de reparação, resistência e promoção dos direitos humanos. A Periferia Brasileira de Letras (PBL) é um exemplo concreto desse processo: um projeto nacional que reúne centenas de coletivos literários atuantes nas periferias urbanas e comunidades rurais, transformando a palavra em ferramenta de pertencimento e dignidade.
Criada em 2020, a PBL é uma rede formada por bibliotecas comunitárias, saraus, slams, rodas de leitura e grupos autônomos de escrita criativa, com presença em todas as regiões do país. A coordenação está sob responsabilidade da Cooperação Social da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Ministério da Cultura. Desde então, o projeto se consolida como ponte entre a cultura popular e o Estado, articulando ações que reconhecem a criação literária como uma forma legítima de acesso à cidadania.
Literatura como direito humano
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 27, garante a todas as pessoas o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade. No entanto, em muitas regiões do país, o acesso à literatura segue restrito por razões econômicas, raciais e territoriais. A atuação da PBL parte justamente do reconhecimento de que a literatura não é privilégio, mas sim um direito básico e, como tal, deve ser garantido de forma ativa pelo poder público e pelas redes da sociedade civil.
A rede busca fortalecer esse direito nas periferias urbanas e áreas rurais por meio de ações educativas, produção de livros e zines, articulação de políticas públicas, formação de mediadores de leitura e incentivo à criação autoral. A prática literária, nesses contextos, vai além do estético: é uma linguagem de afirmação, escuta e transformação social.
Pesquisa revela o tamanho da rede e suas urgências
Em março de 2025, a PBL lançou a segunda edição da Pesquisa Nacional de Coletivos Literários nas Periferias Brasileiras, que ouviu 292 grupos de nove estados e do Distrito Federal. A pesquisa foi conduzida com metodologia mista: entrevistas qualitativas em profundidade e um questionário online de 40 perguntas.
Os dados revelam que 64% dos coletivos literários atuam em territórios de maioria negra, e que a pauta antirracista é central para 65% deles. Além disso, 96% realizam ações com foco em direitos sociais, como educação, juventude, justiça racial, igualdade de gênero e memória comunitária.
As formas de atuação mais comuns incluem bibliotecas comunitárias (26%), saraus (21%), rodas e clubes de leitura (9%) e batalhas de poesia falada, como os slams (9%). Esses espaços se caracterizam por serem autogestionados, com forte enraizamento territorial e ações voltadas para o acesso direto da população local à leitura e à escrita.
Apesar da riqueza e da força cultural dos coletivos, 64% não possuem CNPJ, o que limita o acesso a recursos públicos e editais culturais. Ainda assim, 60% conseguiram acessar algum tipo de financiamento nos últimos dois anos, enquanto 30% afirmaram nunca ter conseguido nenhum apoio institucional.
Esses dados revelam uma contradição que é também uma denúncia: os espaços que mais promovem os direitos culturais nos territórios periféricos são frequentemente os menos reconhecidos e apoiados pelas estruturas formais de financiamento público.
Cultura como cuidado e política pública
Um dos achados mais relevantes da pesquisa é o entendimento coletivo da literatura como forma de cuidado comunitário. Para os grupos participantes, a leitura e a escrita estão diretamente associadas ao bem-estar emocional, à construção da identidade e à saúde mental, fatores que são frequentemente negligenciados em políticas públicas voltadas às populações em situação de vulnerabilidade.
A prática literária, nesses espaços, funciona como uma forma de mediação de conflitos, fortalecimento de vínculos afetivos e produção de pertencimento. Oficinas de escrita são utilizadas como dispositivos de escuta ativa de crianças, adolescentes e idosos. Saraus funcionam como fóruns públicos de memória, crítica social e articulação comunitária. A leitura, nesses territórios, cumpre uma função terapêutica e formativa.
A atuação da PBL dialoga, portanto, com um conceito ampliado de saúde e de política pública, reconhecendo que a produção simbólica e o acesso à arte são fundamentais para garantir os direitos humanos em sua totalidade, incluindo os direitos à educação, à cultura, à liberdade de expressão e à identidade.
Reconhecimento institucional e novos caminhos
Em 2024, durante o 1º Encontro Nacional da Periferia Brasileira de Letras, realizado em Salvador (BA), mais de 100 representantes de coletivos literários se reuniram para debater as políticas públicas de cultura e propor diretrizes ao Ministério da Cultura. O evento incluiu uma audiência pública na Assembleia Legislativa da Bahia e a construção de uma carta-compromisso com propostas de incentivo à literatura comunitária.
As principais demandas apresentadas foram: redução da burocracia para formalização de grupos culturais, criação de editais específicos para coletivos periféricos, apoio à manutenção de bibliotecas comunitárias, valorização de mediadores de leitura e reconhecimento da literatura como política de base territorial.
Esse diálogo institucional aponta para uma virada importante: o reconhecimento dos agentes culturais periféricos como sujeitos de direito, produtores de conhecimento e protagonistas de uma nova política pública da palavra.
Uma nova narrativa para o país
A literatura periférica brasileira, como demonstram os dados da PBL, não é apenas resistência, é também reinvenção. Ela constrói outras formas de narrar o país, outras possibilidades de existência e outras linguagens para falar da dor, da alegria, da violência e da beleza que atravessam os territórios populares.
Mais do que denunciar ausências, essa literatura afirma presenças. Ela dá forma a uma memória coletiva que, por muito tempo, foi silenciada pelos espaços oficiais de cultura e educação. Hoje, no entanto, esses coletivos escrevem a própria história e, ao fazê-lo, ampliam os sentidos da democracia.
Promover o direito à literatura nas periferias não é um gesto de inclusão simbólica. É um compromisso ético com a justiça social, com o reconhecimento da diversidade e com o futuro do país. Como mostram os números, as palavras escritas nas margens não apenas dizem, elas fazem.