Por Brunna Rabelo Santiago
Ao receber um convite para elaboração de um texto sobre os 37 anos da constituição brasileira, completados em 05 de outubro deste ano (2025), imediatamente invadiu-me a mente a canção de Elza Soares, “O que se cala”, lançada em 2018, parte do álbum “Deus é mulher”. O trecho escolhido para compor o título “O meu país é meu lugar de fala”, conversa diretamente com a história da elaboração da constituição de nosso país, como também se perpetua, mantendo-se atual trinta e sete anos depois.
Slogans como “Constituinte para valer tem que ter direitos da mulher” e “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher” eram constantemente utilizados pelo movimento feminista brasileiro no período de deliberações voltadas à criação de uma Assembleia Constituinte, responsável por elaborar um novo texto constitucional. O momento histórico vivenciado em 1985 foi divulgado como “uma oportunidade única de retirar as mulheres da condição de cidadãs de segunda categoria”. Em meio a realização de encontros nacionais, conferências e seminários, foi aprovada a Carta das Mulheres Brasileiras aos constituintes. O referido documento trazia temáticas como igualdade entre cônjuges, acesso da mulher rural à titularidade de terras independentemente de seu estado civil, garantia constitucional da isonomia entre os gêneros no salário, proteção da maternidade e do aleitamento garantindo estabilidade no emprego da gestante, garantia da livre opção à maternidade e direito à interrupção da gestação (ambos os direitos ainda não constitucionalizados até hoje), criminalização de qualquer ato de violência contra as mulheres, entre outros. É evidente a importância desse momento histórico, do qual resultou nossa atual constituição, contendo pelo menos 80% das reivindicações propostas.
Ao admitir a importância de uma constituição democrática, após um longo período de autoritarismo e profundas violações aos direitos humanos, não podemos nos colocar em um lugar de silêncio, limitados a comemorações que invisibilizam violências diárias praticadas contra corpos específicos, descartáveis aos olhos da sociedade. Retomo a canção inspiradora desse título, “minha voz, uso pra dizer o que se cala”, para fazer do meu país, deste espaço de comunicação, o meu lugar de fala.
Em uma realidade em que o mercado de trabalho limita-se a uma inserção de mulheres brancas, sem a correspondência lógica de inserção dos homens no âmbito do cuidado, das atividades domésticas; enquanto perpetua a escravização, sob uma nova roupagem, de mulheres, em sua maioria pretas e pardas, por meio de baixos salários e da precarização de direitos trabalhistas; em que o Brasil é um dos países que mais mata pessoas trans e travestis no mundo; deixo aqui uma pergunta: no dia de aniversário de trinta e sete anos da constituição brasileira, quais corpos foram convidados a comemorar? O espaço público e político, representado por universidades, escolas, assembleias, instituições de justiça, centros de saúde, e outros locais de poder, permanece inacessível a uma enorme pluralidade de corpos, gêneros, raças, sexualidades, idades, maternagens, infâncias, não quistas pelas estruturas de privilégios fortemente dominantes em nosso país. “O direito passa a existir quando é exercido”, exercido por todos os corpos.
Sobre a autora
Brunna Rabelo Santiago, mãe de Joana, pesquisadora em direito e feminismos, feminismo decolonial, maternagens e economia do cuidado, doutora em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP; professora colaboradora do departamento de Direito do Estado da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG.
¹Pintanguy, Jacqueline. A carta das mulheres brasileiras aos constituintes: memórias para o futuro. In: Hollanda, Heloísa Buarque de. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. ²Dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 2025. ³Butler, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. – 3ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.