O amor é cego, a violência é surda e a justiça é muda

Esta crônica foi escrita em mais um dia gélido de Londres, quando estava em pé no vagão do metrô, observando um balão em formato de coração sobrevoar as cabeças dos passageiros.

Ele arruma o cabelo dela. Ela segura a mão dela. Ele abraça ele. Ela beija ele. Tantos toques revelados nos trilhos do metrô que cortam a cidade de Londres. É dia de São Valentim ou Dia Dos Namorados no resto do mundo, menos no Brasil. Aliás, me perdoem o desvio, mas 14 de fevereiro faz muito mais sentido na minha mente moldada pela culpa judaico-cristã, do que a data capitalista escolhida no Brasil. Afinal, que loja vai vender produtos para casais na época mais hedonista do calendário brasileiro?

Não estou reclamando do clima romântico que paira no ar nebuloso da capital inglesa. Longe de mim, uma capricorniana com ascendente em aquário. A verdade é que eu gostaria de ver mais. Não só neste dia, mas em todos. Não sei se São Valentim rasgou uma flecha no meu peito ou é a saudade da terrinha e seus ilimitados beijos – um, dois ou três dependendo de que região você é – e abraços em desconhecidos. O que sei é que a expressão do amor através do toque não deveria ser contida.

Aqui, na terra da Rainha, é um trejeito cultural não se aproximar, não encostar, não ultrapassar espaços pessoais. Qualquer coisa é “I’m sorry“; tudo é “rude“. No entanto, vejo mais casais homossexuais abraçados, de mãos dadas, se beijando, neste lugar cheio de “não me toques” do que no Brasil. Não vou compactuar com o pensamento colonial de que aqui não existe violência. Que aqui gay não apanha. Que aqui transexual não morre por simplesmente ser quem ele ou ela é. Contudo, preciso apontar que no Reino Unido, quando um incidente de ódio homofóbico ou transfóbico se torna uma ofensa criminal, ele é conhecido como um crime de ódio. Não há crimes de ódio homofóbicos ou transfóbicos específicos. Qualquer ofensa criminal pode ser um crime de ódio, se o infrator atacar a vítima devido ao seu preconceito ou hostilidade contra as pessoas LGBT. Além disso, quando alguém é acusado de um crime de ódio homofóbico ou transfóbico, o juiz pode impor uma sentença, de acordo com a Lei de Justiça Criminal de 2003. Vale ressaltar, no entanto, que nem todos os crimes de ódio são tratados igualmente de acordo com a lei. Os crimes de ódio baseados em orientação sexual e/ou identidade de gênero não são considerados crimes pesados, o que significa que eles têm uma sentença máxima inferior à dos crimes de ódio racial ou motivados pela fé. O problema dessa brecha na lei britânica é que envia uma mensagem extremamente dolorosa e prejudicial de que os ataques anti-LGBT são menos sérios do que aqueles baseados em outros fatores.

Dito tudo isso, acredito que é ainda mais hipócrita e desolador que no Brasil, o país do contato, do chamego, do aconchego, a homofobia não é crime. A Constituição Federal do Brasil afirma como objetivo fundamental do país a promoção do bem-estar de todas as pessoas, sem discriminações. Já o Código Penal brasileiro assegura a punição em casos em que essa igualdade de tratamento não é aplicada, resultando em um caso de discriminação. A lei nº 7.716 de 5 de janeiro de 1989, conhecida como “Lei do Racismo”, decreta que serão punidos “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Assim, um crime de ódio vai além da noção de crime individual. Ele é um delito que prejudica toda a sociedade e as relações que nela existem, produzindo um efeito não apenas nas vítimas, mas também no grupo a que elas pertencem. No caso específico dos LGBT, segundo uma pesquisa realizada pelo Grupo Gay da Bahia, uma pessoa desse grupo foi assassinada por crime de ódio a cada 19 horas em 2017. Em 2018, o número é praticamente foi o mesmo: um LGBT morto a cada 20 horas.

Há pelo menos quatro décadas, o movimento LGBT no Brasil reivindica pautas relacionadas ao fim da violência contra pessoas desse grupo. O primeiro projeto relacionado à criminalização da LGBTfobia foi apresentado no Congresso em 2001 como PL 5003/01. O seu princípio era determinar “sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas”. Cinco anos depois, esse projeto foi atualizado e se transformou no PLC 122/2006, que buscava alterar a lei 7716/89 incluindo as discriminações por gênero, orientação sexual, identidade de gênero e sexo. O projeto de lei passou pela Câmara dos Deputados, porém foi arquivado no Senado após oito anos sem aprovação.

Recentemente, o STF iniciou o julgamento sobre a questão da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero como previstos no PLC 122/2006. As duas ações que chegaram à principal corte do Brasil é o Mandado de Injunção 4733/2012, movido pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos (ABLGT). Já a segunda é a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADO 26/2013) movida pelo Partido Popular Socialista (PPS), em 2013. Ambas pedem que o Supremo criminalize a violência e a discriminação contra pessoas LGBT, sendo equiparadas ao crime de racismo até o Congresso Nacional decidir elaborar legislação específica sobre o assunto. Para isso, as duas ações se baseiam nos incisos XLI e XLII do artigo 5º da Constituição Federal, que afirmam que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” e que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”, respectivamente.

O projeto começou a ser votado no STF em fevereiro deste ano. No entanto, o julgamento foi suspenso pelo presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli. Segundo ele, o plenário se envolveu muito com o tema e, por isso, mais de 30 processos não foram votados. Toffoli não marcou uma data para uma nova sessão. Até agora, quatro ministros votaram a favor de enquadrar a LGBTfobia como crime de racismo. Faltam ainda sete votos.

A demora para tomar uma decisão por parte dos ministros causa diversos danos e reproduz vários sentidos. Isso porque, enquanto determinados grupos não forem colocados no banco dos réus, alguns tipos de conduta serão admitidas e até aclamadas. Um exemplo disso é a pesquisa “LGBT+ no período eleitoral e pós-eleitoral”, conduzida pela organização de mídia Gênero e Número e financiada pela Fundação Ford. Ela mostra que 92,5% de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros sentiram na pele a escalada de violência contra o grupo. Além disso, mais da metade afirmou ter sofrido algum tipo de violência motivada por sua identidade de gênero ou orientação sexual desde as eleições do ano passado – sendo que 94% foram vítimas de agressão verbal e 13% de violência física.

Desse modo, como explica Renan Quinalha na revista Cult, a questão não trata apenas de conflitos judiciais em que há um culpado e outro inocente. “A decisão de julgar e condenar criminalmente determinados discursos e práticas de ódio se traduz em uma caracterização política e moral dessas condutas, que passam a ser vistas como injustas e reprováveis, colaborando com a estruturação de relações com tolerância e alteridade”, como explica Quinalha. A leitura do que é entendido como violência no atual Código Penal deixa inumeráveis experiências de violação fora do escopo, reservando a poucos a possibilidade de ser lido como vítima e receber reparações do Estado. Um ponto central que atravessa essa crítica é que essa leitura é baseada em uma visão liberal e individual das experiências humanas. Aqueles reconhecidos como vítimas são, na maioria das vezes, indivíduos apresentados como seres desprovidos de marcadores sociais que dão pistas sobre a estrutura que os privilegia ou oprime. Assim, o binário vítima-perpetrador e a centralidade no indivíduo, desprendidos da estrutura em que está inserido, impossibilitam a observação da complexidade dos conflitos de violações maciças dos direitos humanos.

A ruptura dessa cultura de impunidade é essencial para empoderar as vítimas e o movimento LGBT como um todo. Mas, acima de tudo, a criminalização da homofobia é necessária para que a população de lésbicas, gays, bissexuais e transsexuais finalmente goze de uma cidadania plena, em que andar de mãos dadas, beijar, abraçar ou a demonstração de qualquer tipo de carinho sejam vistos da maneira como são: um ato de amor.

Por Marina Demartini

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