O Dia Internacional da Mulher, oficializado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1975, tem dissonâncias na origem histórica. Apesar disso, a data serve como um lembrete da organização política feminista sobre as demandas de mulheres no trabalho, na vida pública e familiar.
Nada de flores ou presentes: o Dia Internacional da Mulher é, acima de tudo, uma data política. É reconhecida a proposição da data feita pela alemã Clara Zetkin, em 1910, durante o II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhagem. Apesar das frequentes associações entre o Dia da Mulher e o incêndio na fábrica Triangle Shirtwaist Company nos Estados Unidos, ocorrido em março de 1911, reivindicações sobre condições trabalhistas de mulheres operárias e o direito ao voto já vinham sendo discutidas anteriormente.
Segundo a socióloga Eva Blay, o incêndio da fábrica – que matou 125 mulheres e 21 homens, em sua maioria judeus – de fato fortaleceu o reconhecimento dos sindicatos. No entanto, líderes sindicais nem sempre entendiam a necessidade de reivindicações específicas das mulheres dentro do movimento trabalhista, como aponta Blay em ensaio publicado em 2003: “as trabalhadoras participavam das lutas gerais mas, quando se tratava de igualdade salarial, não eram consideradas”. As demandas das mulheres eram vistas como empecilhos para a ‘luta geral’, afinal, sua renda era apenas complementar ao salário dos homens.
Neste cenário, é importante relembrar que a luta de mulheres sindicalistas não abarcava os direitos de mulheres negras, que se viam em condições de exploração desde a escravidão. Mulheres negras não lutaram pelo direito ao trabalho pois esta foi uma condição imposta, não uma escolha. Sessenta anos antes das discussões sobre o Dia da Mulher, a ativista Sojourner Truth denunciava a diferenciação no tratamento que recebia enquanto mulher negra em discurso proferido na Women’s Rights Convention, em Ohio. As especificidades do movimento feminista negro culminaram na criação posterior do Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha (25 de julho), instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1992.
Passados quase cinquenta anos desde a oficialização do Dia Internacional da Mulher, a data ganhou um viés amplamente comercial. Assemelha-se muito mais à uma celebração, que movimenta o comércio de floriculturas e chocolates, além de outros setores que se apropriam da data com fins capitalistas. Mas, afinal, há o que comemorarmos no dia de hoje? De fato, muito direitos foram conquistados e as reivindicações feministas ganharam novas formas. No entanto, há um longo caminho a percorrer. Destaco aqui algumas motivações que reforçam a necessidade de ainda lutarmos por equidade no trabalho, na política, na saúde, na vida pública e privada:
A violência contra mulheres apresenta índices alarmantes.
Dados da Organização Mundial da Saúde revelam que 1 em cada 3 mulheres em todo o mundo já sofreu violência física e/ou sexual. A cada 3 brasileiros, 2 viram uma mulher ser agredida no Brasil em 2016, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. De acordo com o Atlas da Violência 2020, uma mulher foi assassinada a cada duas horas no Brasil em 2018. Os números não param por aí e representam a misoginia, o assédio e a falta de segurança às mulheres dentro e fora de casa. Além disso, os índices são ainda mais violentos quando olhamos para as mulheres negras: elas representam 68% das mulheres assassinadas no país em 2018.
A pandemia de Covid-19 escancara as desigualdades de gênero, raça e classe.
Com a pandemia de Covid-19 chegando à marca de 1 ano e em seu momento mais crítico no Brasil, as manifestações do Dia da Mulher não ocorrerão nas ruas como nos anos anteriores. Em meio ao aumento desenfreado no número de mortes por Covid-19 e o luto de incontáveis famílias, vemos como a crise política e sanitária afeta desproporcionalmente na vida das mulheres. São elas que estão na linha de frente nos postos de saúde e nos cuidados com a família. Segundo a diretora executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, as mulheres representam 70% das pessoas que trabalham no setor social e de saúde, como enfermeiras, parteiras, faxineiras e lavanderias. Também são mulheres que realizam grande parte do trabalho não remunerado e/ou garantem a subsistência com trabalhos informais.
Além disso, o isolamento social como única medida possível para mitigar o contágio da doença, fez diversas mulheres ficarem confinadas com seus agressores. Segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, desde o início da quarentena (em março de 2020), o número de denúncias feitas pelo canal 180 aumentou 17,9%, em todo o país. Segundo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também houve um aumento de 22% nos casos de feminicídio em 12 estados brasileiros entre março e abril de 2020.
Mulheres ainda ganham menos que os homens exercendo a mesma função
Segundo estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2016, mulheres recebem 77% do que ganham os homens exercendo a mesma função. A realidade brasileira apresenta dados semelhantes: o rendimento mensal médio das mulheres no quarto trimestre de 2019 foi 22% menor que o dos homens, aponta estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Da mesma forma que os índices de violência são maiores entre mulheres negras, o mercado de trabalho é ainda mais desigual. O documento Potências (in)visíveis revela que a mulher negra recebe apenas 44% do salário de um homem branco. Elas também possuem a menor presença em cargos de liderança (representando apenas 6,6% do total e a mulher branca 31%).
Razões para essas estatísticas também estão atreladas a divisão desproporcional do trabalho doméstico. O mesmo estudo da OIT destaca que mulheres dedicam 2,5 vezes mais tempo que os homens nos afazeres da casa e cuidados com os filhos. A jornada tripla de trabalho é uma realidade para a maior parte das mães brasileiras, especialmente em regiões marginalizadas.
Nem tudo são flores, é o que esses apontamentos demonstram. As lutas feministas representam diversas bandeiras, de mulheres com demandas específicas e realidades distintas. São distinções necessárias ao abordar as problemáticas que envolvem o ‘ser mulher’. Ainda assim, podemos manter um olhar esperançoso ao reconhecermos que não são só espinhos. As conquistas de mulheres que nos antecederam nos permitem dar continuidade na luta por uma sociedade menos retrógrada, mais humana e com maior protagonismo para todas as mulheres e suas representações.
Paula Claro
A autora é Jornalista, mestranda do PPG Jor da UEPG com bolsa da Capes e integrante do grupo de pesquisa Jornalismo e Gênero