Escrevo este texto no momento anterior ao grande encontro. Daqui no máximo dez dias nossa filha Rita chega ao mundo, embora sua existência já vibre em nós há pouco mais de nove meses. Essa poderia ser uma história de um amor que gerou frutos, mas prefiro pensar em uma história sobre descobertas de desejos escondidos, de um longo caminho médico e farmacológico, de um embrião que teve as primeiras células multiplicadas fora de nossos corpos, de duas mulheres empenhadas na vontade de ser mães e vivendo em um país que há pouco saiu do completo abismo. E olha que o abismo está sempre ali, um passo de distância. Poderia ser a história também de maternidades políticas e fora dos padrões ou até sobre uma cachorra mimada que vai ganhar uma irmã humana e até o momento nada se sabe sobre seu comportamento posterior. Essas são apenas algumas possibilidades entre tantas formas de significar o que nos ocorre no momento.
Decidimos que queríamos ser mães e essa foi uma decisão muito fácil. Difícil foi escolher como seríamos mães, o que funcionaria melhor para nós, para onde nos levava o desejo. De antemão afirmo que nos levou a um complexo caminho em que a gente achava saber tudo o que de fato a gente desconhecia. Eu embarquei nesse processo certa de que queria engravidar, queria viver o ciclo gravídico-puerperal como a grande aventura da minha vida. Após uma tentativa de transferência de embrião para o meu útero sem sucesso e um longo tempo de reflexão, quase um ano, percebi que a gravidez não era o que eu queria viver, mas a maternidade ao lado da minha esposa. Um erro bastante compreensível quando costumamos socialmente associar a gestação com o processo de se tornar mãe. Eu estava minimamente advertida sobre isso, mas mesmo assim caí na armadilha.
Infelizmente, essa associação me custou muitas noites mal dormidas até conseguir formular que minha vontade era outra, pois a ideia da gestação só me gerava angústia. Curiosamente, minha esposa viveu um movimento oposto de descoberta. A gravidez era impensada para ela, pois parecia automático que corpos que performam feminilidade gestem bebês e sua performatividade de gênero pode ser lida como mais masculina do que a minha. Quase caímos em uma nova armadilha, desta vez de gênero.
A gestação antes impensada começou a se tornar um desejo explícito para ela, um desejo que quando foi pronunciado gerou alegria e alívio para nós duas. E assim retornamos à clínica de fertilização, invertendo os corpos, mas firmes no nosso propósito. A partir daí foram meses de novidades, de sustos, de enjoos, de consultas de pré-natal, de fotos de uma barriga que cresce a cada dia, de preparações que nos fizeram sentir muitas vezes mais despreparadas ainda, de risadas sobre as fantasias e expectativas que criamos. Em resumo, tudo o que comumente as gestações envolvem e demandam. Um pouco de medo e um tanto de sonho envolvido.
Mas como ter uma filha sendo nós duas mães? Aqui entra um tanto de sorte e de privilégio por ter tido uma rede de pessoas que não apenas reconheceram nossa maternidade como válida, mas que demonstraram a todo tempo a alegria com que esperam juntos de nós a chegada desta criança. É lógico que nem tudo são flores, pois quando penso em nossa filha nessa sociedade confusa, peço forças para conseguir mediar os sentimentos que nossa família pode causar em pessoas que se sentem afrontadas com a nossa existência. Sei que não conseguiremos protegê-la de todos esses sentimentos, alguns deles difíceis de serem traduzidos sem que nos tornemos seres desesperançosos. Mas sei que enfrentaremos nós três juntas qualquer questionamento sobre essa configuração familiar, afinal, não nos foi dado o direito de não lutar pelo mínimo. Além disso, a luta pode ser boa.
Lutar pelo que acreditamos e nos unirmos com outras pessoas que acreditam que as coisas podem ser diferentes é uma das grandes alegrias da vida. É um ato não só de amor como de esperança. E talvez seja esse tipo de esperança em que acredito, a esperança coletiva. Não existe salvação individual nesse mundo e seja qual for a luta da nossa filha, ela terá o nosso apoio. Faltando poucos dias para esse encontro, penso em como enfrentar esse mundo com um ser que acabou de chegar nele, ainda tão desprovido de linguagem, e que nem imagina como é a vida fora do calor do útero. Para esses recém-bem-vindos e bem-vindas, diria: criem núcleos de proteção com pessoas que dialogam com seus ideais, compartilhe amizades e afetos, são eles que nos salvam todos os dias.
Se chegamos até aqui, poucos dias antes de conhecer a bebê que irá marcar definitivamente a nossa existência, foi porque seguimos nesse caminho muito bem acompanhadas, uma da outra, nós com os outros entes queridos. A psicanalista Vera Iaconelli, em seu livro Manifesto Antimaternalista, cita o percurso de Cory Silverberg na escrita de um livro para crianças sobre a origem dos bebês de uma forma que abarcasse as diferentes composições familiares e meios de concepção e maternidade. Ele escreve que todos os bebês surgem a partir do encontro de um óvulo com o espermatozóide, seguido da concepção e uma gestação levada a termo. Ponto. Assim surgem os bebês. Todos os bebês. Mas só isso importa? Não, para o autor duas perguntas importam mais: “Quem ansiava por nosso nascimento?” e “Quem nos aguardava ao nascer?”. É no desejo de duas mães e na alegria compartilhada por seus amigos e familiares que uma bebê pode vir ao mundo.
Por Jessica Gustafson