Sementes da realeza negra

Todo descendente de negros que mora no Brasil alguma vez na vida já disse a seguinte frase: “sou descendente de escravos”. Porém, esse tipo de fala nem sempre é positiva, já que ela continua colocando o negro e a negra em papéis inferiores dentro das relações sociais de nosso país. Continuamos satisfeitos com a naturalização de alguns cenários que deveriam incomodar e nos deixar tristes, como por exemplo, universidades, restaurantes, judiciário, poderes executivo e legislativo federal ao municipal com presença da maioria branca. Sabemos que nossa cultura advém de civilizações européias, indígenas e negras, mas ter o mínimo de negros nestes espaços seria como viver o Apartheid sul-africano ou as Leis Jim Crow estadunidense.

Não somente necessitamos incorporar o espírito de resistência de Nelson Mandela, Martin Luther King Jr. ou de Rosa Parks que ousaram a lutar, sonhar e até o simples ato de sentar-se em um lugar de branco, mas precisamos mostrar que o lugar do negro e da mulher negra é onde eles quiserem. Trata-se, pois, não de descendentes de escravos, mas de herdeiros de realezas que sofreram golpes e foram privados de sua liberdade.

Em outras palavras, ser negro é ser descendente de reis e rainhas, de pessoas como a Rainha Anima da Nigéria, Rainha Makeda da Etiópia- esposa do Rei Salomão, Rei Taharqa da Núbia (710-664A.C) e o exemplo mais emblemático de todos a Rainha Cleópatra do Egito que era negra, mas foi eternizada nos imaginários como branca devido a representação dela por parte de uma atriz branca, no caso Elizabeth Taylor em 1963.

Elizabeth Taylor (atriz branca de olhos claros) dar vida a uma rainha negra denuncia a falta de espaço do negro e da negra na mídia, mas essa realidade perdurou e perdura por muitos anos e até mesmo na nossa atualidade, como nos meios de comunicação brasileiros. Uma cantora brasileira, MC Carol, através da sua arte conseguiu materializar um manifesto, através da música “Levanta Mina”, de 2021, sobre essa situação, e em um trecho da canção ela alerta:

“É difícil estar feliz

Com tanta cicatriz

É difícil se amar sendo excluída

Olhar pra TV

E ainda ver paquitas”

Na canção ela cita não somente negras, mas gays, gordas e demais minorias sociais que são deixadas de lado pela mídia. Segundo a música, não bastava as cicatrizes do preconceito, onde se encontra o racismo, mas ligar a Tv e ainda ver “paquitas”. As paquitas durante 1984 a 2002 eram dançarinas, grupo musical e assistente de palco da apresentadora Xuxa Meneghel que tinha como características os corpos padronizados e de pessoas brancas.

O mesmo vale pela desvalorização de artistas negras, um grande exemplo é a falta de visibilidade de atrizes afrodescendentes durante muitos anos e que ficaram com papeis inferiores, como escravas ou como empregadas, como tratou Djamila Ribeiro, que em “Quem tem medo do feminismo negro?” traz a falta de mulheres negras como mocinhas ou vilãs, a desvalorização de grandes atrizes como Ruth de Souza, e um dos movimentos mais preocupantes da história que é a negra na mídia de maneira hipersexualizada, como as Globelezas.

Não somos protagonistas das novelas, não somos mocinhas nem vilãs, no máximo as empregadas que servem de mera ambientação,  adereço (inclusive passível de abuso) para a história do núcleo familiar branco. Basta lembrar o último papel da grande atriz Zezé Motta na emissora, como a empregada Sebastiana em Boogie Oogie. Algumas atrizes como Taís Araújo e Camila Pitanga se destacam, mas não podemos ignorar que é por serem jovens e terem a pele mais clara. Mulheres como Ruth de Souza são esquecidas num meio que valoriza grandes nomes como Fernanda Montenegro. Isso não tem nada a ver com talento (tanto a primeira como a segunda têm versatilidade e técnica de sobra), mas sim com a cor da pele de cada uma e as oportunidades que lhes são dadas. Qual será o destino das atuais atrizes negras brasileiras? Ou das meninas negras que sonham estudar teatro e cinema? Há lugar para elas? Se há, que lugar é esse? Talvez o mesmo das atrizes negras mais velhas e Globelezas: o descarte e o esquecimento quando seus corpos não servirem mais. A verdade nua e crua é que a Globeleza atualmente só reforça um lugar fatalista, engessado, preestabelecido, numa sociedade brasileira racista e machista. Esse lugar fixo precisa ser rompido, começando com o fim desse símbolo. (RIBEIRO, 2018, p.141-142)

Por tudo isso, passou da hora de negros e negras ocuparem todos os espaços da sociedade e assumirem a sua descendência de realeza e não como escravos. Óbvio que não podemos esquecer as atrocidades em que o povo negro viveu no mundo, mas está na hora de termos a própria voz e garantir a voz para negros e negras no futuro. Já basta terem escondido a melanina de personalidades históricas negras como Cleópatra. O negro e a negra precisa de espaço em setores sociais e a mídia, e não somente os cemitérios, subempregos e a capas de jornais com corpos mortos negros, já que segundo o Atlas da Violência 2020, o homicídio de negros aumentou 11,5% que antes era 37,8 por 100 mil habitantes. Com voz, lugares ocupados e o fim do papel de escravos os negros podem assumir seus espaços e fortificar cada vez mais a sua união e a consciência de classe.

 

Referências

RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? Companhia das Letras, São Paulo, 2018.

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