Fábio Bacila Sahd
A questão não é ou não deveria ser tanto o que aconteceu e se tornou fato jornalístico, mas sim o que estava acontecendo um dia antes da operação do Hamas. Com qual situação a ação do Hamas rompeu, ou seja, qual o seu contexto? A imensa maioria do noticiário brasileiro se ateve ao fato jornalístico, espetacularizando o ataque do Hamas no sul de Israel. Nesse exercício narrativo, por incompetência ou deliberada linha editorial, se omitiu completamente o contexto, bem como as correlações de força e distribuição da responsabilidade. Portanto, para preencher essa lacuna, irei fazer o que deveria ter sido feito para favorecer a compreensão de nossa sociedade: contextualizar os fatos e inserir a operação do Hamas no tecido temporal da questão Israel-Palestina.
O contexto, basicamente, é o de um regime de apartheid, mantido desde 1948. Israel, autodefinido como Estado judeu, é o soberano direto ou indireto sobre a população judaica e palestina, dominando e oprimindo sistematicamente a segunda enquanto favorece a primeira, exatamente, como o regime branco da África do Sul do apartheid fazia. A lógica é a judaização/despalestinização ou colonização de todo o território. Conforme a teoria dos direitos humanos, expressa no preâmbulo da Declaração Universal, se esses não vigoram, as populações subalternizadas se veem forçadas a recorrer à revolta e rebelião. É evidente que um regime de apartheid é um regime de violação sistemática desses direitos, à medida que para manter a dominação de um grupo racial sobre outro o oprime sistematicamente, cometendo atos desumanos como assassinatos, tortura, censura, prisões arbitrárias, limpeza étnica, genocídio, danos físicos e mentais, desapropriação, etc. Israel, ao se intitular legalmente como Estado judeu em território multinacional, promove a discriminação, criando hierarquias de direitos.
A situação remonta à fundação de Israel. Para viabilizar uma maioria judaica, em 1948, recorreu a uma limpeza étnica massiva, já que cerca da metade da população de seu território reivindicado, ao menos até então, era de palestinos, que detinham cerca de 90% das propriedades fundiárias, o que reflete a origem imigrante da maioria dos sionistas que estavam na Palestina. Onde estão esses refugiados e seus descendentes? Gaza, Cisjordânia, países vizinhos e restante do mundo. Totalizam mais de cinco milhões. Mais de dois terços da população de Gaza é de refugiados do sul de Israel, que conforme a resolução 194 da ONU têm o direito de retornar para suas terras e as reaver, onde hoje é Israel.
Em 1967, Israel expande seu território, conquistando a Faixa de Gaza e Cisjordânia, além de territórios do Egito e Síria. Inicia um processo de colonização também nessas porções da Palestina histórica. A Organização para a Unidade Africana, antecessora da União Africana, passa a denunciar a colonização israelense como análoga ao regime de apartheid na África do Sul que, aliás, mantinha relações de amizade e aliança com Israel. Resoluções da Assembleia Geral da ONU expressam esse mesmo entendimento, assim como muitos intelectuais que também denunciam esses paralelos. Inclusive, nos anos 1970, uma resolução da ONU equivale sionismo a racismo.
Em 2007, enterrada a esperança suscitada com o processo de paz de Oslo, praticamente, inicia-se o debate internacional sobre Israel cometer o crime de apartheid a partir do relatório publicado por John Dugard, então relator especial designado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados. Desde então, seus sucessores e diferentes órgãos da ONU, comissões, ONGs e intelectuais defenderam essa tese que, como consta no relatório da Comissão Econômica e Social para a Ásia Ocidental (ESCWA), de 2017, já está para além de qualquer dúvida razoável.
Em suma, se vigora apartheid, vigora a violência e não a paz e o respeito aos direitos humanos. Logo, fechados os canais de oposição legal, resta, lamentavelmente, o recurso dos oprimidos à rebelião. Para um aprofundamento do entendimento, recomendo a leitura dos relatórios sobre o apartheid israelense publicados, em 2020 e 2021, por duas das maiores organizações de direitos humanos sobre o tema: Amnesty International e Human Rights Watch.
Referências:
AMNESTY INTERNATIONAL. Iran: Human rights in Iran: Review of 2020/21. 2021. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/documents/mde13/3964/2021/en/. Acesso em 18 de outubro de 2023.
HUMAN RIGHTS WATCH. Israel and Palestine – Events of 2021. 2021. Disponível em:https://www.hrw.org/report/2021/04/27/threshold-crossed/israeli-authorities-and-crimes-apartheid-and-persecution. Acesso em: 18 de outubro de 2023.
UNITED NATIONS. General Assembly. 194 (III). Palestine – Progress Report of the United Nations Mediator. 1948. Disponível em: https://daccess-ods.un.org/tmp/3158912.06264496.html. Acesso em 18 de outubro de 2023.
UNITED NATIONS. General Assembly. 3379 (XXX). Elimination of all forms of racial
discrimination. 1975. Disponível em: https://daccess-ods.un.org/tmp/3109523.35596085.html. Acesso em: 18 de outubro de 2023
UNITED NATIONS. ESCWA Anual Report 2017. 2017. Disponível em https://archive.unescwa.org/publications/annual-report-2017. Acesso em: 18 de outubro de 2023.
*Formado em história pela UFPR, com mestrado pela UEM e doutorado na USP no programa “Humanidades, direitos e outras legitimidades”. Atualmente, é professor no Departamento de História da UFPR.