Entrevista: Dia do Orgulho LGBTQIA+ e racialidade com Nick Nagari

Nick Nagari (25 anos) escreve, cria conteúdos e palestra sobre bissexualidade e transgeneridade de uma perspectiva negra, gorda e não-binária. Criador do “Quem bindera”, um projeto que amplia a qualidade de vida de pessoas transgênero. Cria conteúdo há sete anos e há dois virou seu foco de trabalho principal (@nicknagari).

Qual a importância de aliar a pauta racial à discussão da comunidade LGBTQIA+?

Quando a gente pensa em sociedade, a gente entende que a raça não tem como se desvencilhar de nada, nosso processo histórico, em qualquer categoria, foi muito relacionado a raça. Então, quando a gente fala de pessoas LBTQIA+ a gente tem que pensar que cada pessoa está vivendo algo. Mesmo que a gente tenha coisas em comum, a gente também vive coisas em paralelo que muitas vezes se interseccionam com essas opressões. Então, se falamos de mulheres bissexuais brancas, isso vão ter certos efeitos que elas vão experienciar mais, se falamos de mulheres bissexuais negras, vão ter outros efeitos diferentes desses que elas vão experienciar mais porque a bifobia vai estar aliada ao racismo, assim como o que vai acontecer com as outras letras da sigla. Quando a gente fala das opressões, do que a gente sofre e da nossa própria vivência, isso vai se mostrar diferente, a gente vai ter outras construções de sexualidade, porque tem ali a construção racial no meio. É muito importante que a gente fale, tanto quando a gente fala de vivência, quanto quando a gente fala de opressão, essas duas pautas estão muito relacionadas. Então é importante a gente enquanto pessoas LGBTs negras tenham visibilidade tanto na comunidade LGBTQUIA+ quanto da comunidade negra também. 

Como essas pautas raciais são apresentadas durante o mês do orgulho LGBTQIA+?

Não são. Em geral, elas são muito apagadas. Eu não necessariamente preciso tocar no ponto sobre em que momento o racismo se mostra e o que me afeta enquanto pessoa negra, só a minha perspectiva toda de uma pessoa negra, tudo que eu falo em relação a nossa comunidade parte de um princípio de uma pessoa negra. O que eu vejo muito são pautas que eu não me identifico, está longe de ser minha maior prioridade. Enquanto tem pessoas LGBTQIA+ brancas e de classe média, muitas vezes com certos acessos que é prioridade delas. É só a gente ver que a pauta que é mais difundida dentro do nosso movimento é casar, todo mundo quer amar, todo mundo quer casar. Se você pensa em pessoas LGBTQUIA+ negras, principalmente travestis negras, a gente está tentando existir, sabe? A gente está tentando ter um trabalho digno, poder sobreviver com qualidade de vida. Acho que no fundo é muito sobre prioridade: Quais são as pautas que levam o nome do movimento e quais são mais urgentes?

Como é para você, sendo uma pessoa negra, ser uma das principais figuras no que diz respeito à comunidade LGBTQUIA+ atual?  

Eu acho que é um grande desafio, porque eu sinto que dentro do movimento negro essas pautas muitas vezes são abafadas. Existe toda uma coisa de “a raça vem primeiro”, estou cansado de ouvir esse tipo de jargão que eu não concordo, acredito que a gente tem que pensar em todas as pautas de forma interseccional, porque todas elas se cruzam. Eu não sou negro e depois sou uma pessoa trans, essas duas coisas estão relacionadas. Então, é um assunto que eu sinto que a gente precisa conquistar esse espaço, porque ele não é dado nem dentro das comunidades que deveriam acolher a gente. Enquanto pessoa negra, eu sou uma pessoa trans e bissexual e enquanto uma pessoa bissexual eu sou uma pessoa negra, me coloco nesse lugar de fazer essas duas comunidades darem um destaque para a gente na marra, porque não é uma coisa que é dada geralmente. No dia 20 de novembro eu até postei um vídeo falando disso, sobre essa questão de prioridades que eu enxergava na minha militância e no meu movimento que eu não via em outros movimentos, então naquele momento, dia da consciência negra, nenhuma das páginas, nenhum dos ativistas que não são LGBTs mencionam a gente. Fica naquilo de falar sobre a vivência do homem negro como se todos os homens negros fossem cis-heteros, não se fala da vivência da bicha negra, não se fala da vivência da sapatão negra ou do bissexual negro, eles sempre partem desse princípio de que todos nós somos heteronormativos. Assim como o movimento LGBTQUIA+ faz a mesma coisa, parte da vivência do homem trans sempre branco. Tem várias questões aí que são colocadas fora disso, principalmente no movimento trans, carece muito disso, parece que tudo se resume à passibilidade, sendo que quando a gente fala sobre pessoas trans negras, a nossa leitura mudar, é algo que muda toda a opressão do racismo. Se eu hoje fosse lido como uma mulher negra eu sofreria algumas coisas, mas se eu passar a ser lido como um homem negro eu sofreria outras coisas e não não necessariamente eu vou sofrer menos que homens trans brancos. Na verdade, muitas vezes, esse é o sonho “ah, se eu passar a ser lido como homem cis branco, acabaram os problemas”, o que na verdade eu nem acredito que seja verdade, mas muita gente lida desse jeito. Aí se fala muito dessa tal passabilidade de homem sem pensar que para uma galera, como eu, isso não resolve nenhum problema, isso no máximo fecha um e abre outros. Então, quando a gente racializa nossas análises, começamos a ter noções que não tínhamos se fingirmos que isso não afeta.

O que você acredita que os meios de comunicação, principalmente o jornalismo, podem fazer pelo mês do Orgulho LGBTQIA+?

Eu acho que usar esse espaço para ecoar as vozes que têm pouco espaço. Vamos dar uma olhada historicamente, de dez anos para cá, quais são as pautas que sempre aparecem? Todo ano se fala de casamento, todo ano é #LoveIsLove, por que a gente não pode avançar nesse debate? Eu sinto que às vezes a mídia acabando falando sempre para quem está chegando, então ela vai falar “você querido homofóbico, não seja homofóbico, as pessoas só querem amar”, mas a gente pode encarar o papel da mídia como um pouco mais desafiador que isso, podendo questionar um pouco mais, tocando na ferida mais funda, ou então fazer matérias para as próprias pessoas do meio LGBT, como, por exemplo, o que uma pessoa que está se descobrindo, ou em outra fase, cansada, gostaria de ouvir.

Tem mais alguma coisa que você ache importante trazer para o debate estabelecido?

Eu acho importante trazer a questão da bissexualidade também, já que é focada na vivência das pessoas bissexuais brancas. Então, eu sinto que é um pouco superficial, por exemplo, a sexualização da pessoa bissexual, que também é importante, mas não atinge o cerne da questão, de como que a estrutura da nossa sociedade ajuda com o apagamento bissexual. Coisas que vão um pouco mais além de como a sociedade me vê, já que isso é muito pessoal e de um ponto de vista de uma pessoa mais padrão, há outras óticas e vivências que também precisam ser faladas, no fundo é necessário pluralizar as narrativas. E tem a questão da socialização, quando a gente cresce com características demarcadas como LGBTs, muitas vezes a gente já sofre desde a infância com isso, mesmo que a gente não saiba direito o que está acontecendo, já estamos sendo oprimidos com base nisso. Quando se fala de socialização LGBT ligada à socialização das pessoas negras, se percebe que a raça é uma questão importantíssima, já que mulheres brancas e negras são tratadas de forma diferentes. Eu fui socializado como uma mulher negra, mas hoje lido como não-binário negro tenho outras formas de socialização, assim como uma mulher trans branca vai ter a fragilidade concedida a ela, coisa que não acontece com uma mulher trans negra. 

Partindo de outra ótica, como você encara as publicidades do Mês do Orgulho que geralmente trazem apenas LGBTs brancos?

Isso chega a ser até engraçado, porque fica muito na cara. Mas acredito que seja por uma questão de ser um rosto que as pessoas heteronormativas querem ver. Já está se falando de uma pauta marginalizada, então vão tentar colocar uma pessoa mais “higienizada” possível para que a família tradicional veja e pense “ah, isso aí até passa”. Estendo isso a marcas que querem criar publicade na internet, eles vão querer colocar rostos que as pessoas querem ver, e isso é até um dos meus desafios enquanto criador de conteúdo negro, porque eu falo sobre um assunto que as pessoas não querem ouvir e sou um rosto que as pessoas não querem ver. Cabe também às pessoas que realizam esse tipo de campanha se isso realmente vai ser uma ajuda, se realmente vai ser revolucionário, porque de certa forma vai ser só pessoas brancas padrões aceitando outras pessoas brancas padrão, se muda muito disso já é muito afeminado, muito negro, entre outros problemas que vão querer achar.

De um confronto entre policiais e frequentadores de Stonewall Inn. em Nova York, em 28 de junho de 1969, surgiu a data  que se comemora o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. O bar sofria invasões recorrentes de policiais por ser um “local de promiscuidade”, mas naquele dia as pessoas lá presentes se mobilizaram contra a violência sofrida. O ato é lembrado como Revolução de Stonewall e marca o início da Parada do Orgulho de Nova York, a mais antiga do mundo. As comemorações e reivindicações LGBTs se estendem a todo o mês de junho, sendo este o Mês do Orgulho.

 

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