Falta de conhecimento sobre violência obstétrica resulta em baixo número de denúncias

Em cinco anos, mais de 40 denúncias de situações vivenciadas foram recebidas pela Associação das Doulas do Rio de Janeiro

A Associação das Doulas do Rio de Janeiro recebeu mais de 40 denúncias de violência obstétrica entre 2019 e 2024, sendo quatro delas registradas em São  Paulo, Santa  Catarina, Paraná e Bahia. As denúncias foram feitas por meio de um canal de denúncia online do projeto Doula a Quem Quiser e encaminhadas para o Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher Vítima de Violência de Gênero (Nudem), da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que avalia a possibilidade de abrir um processo judicial para reparação de danos morais, físicos ou psicológicos.

Segundo cartilha do Ministério da Saúde, a  violência obstétrica é caracterizada pelo desrespeito às pessoas que gestam, à sua autonomia, ao seu corpo e seu processo reprodutivo, na gestação, no parto ou no pós parto, podendo se manifestar através da violência física, verbal  ou sexual e pela realização de intervenções e procedimentos desnecessários ou sem comprovação científica. 

A doula, educadora e uma das criadoras do projeto Doula a quem quiser da Associação de Doulas do Rio de Janeiro, Paula Inara, acredita  que o receio em denunciar parte do desconhecimento, vergonha e falta de crença de que a denúncia será ouvida. Porém, sempre que um caso é veiculado ou divulgado na mídia, o número de denúncias no site e na ouvidoria da ADOULAS aumenta. Ela afirma a necessidade da criação de um disque denúncia em todos os estados do Brasil. “Os abusos e violências obstétricas acontecem em todos os estados, e todas as mulheres precisam ter acesso a esse canal de denúncias.” 

 

Histórias de violência 

 

Janete Dalcol compartilhou a história do parto de seu quinto filho, no qual sofreu violência obstétrica. Paulo Henrique nasceu quando Janete tinha 43 anos, ela decidiu fazer a laqueadura junto ao parto, pois não tinha saúde para enfrentar mais uma gestação. Durante a gravidez, teve muitas complicações e foi orientada pelo obstetra a fazer a cesariana quando estava com 36 semanas. 

Após o parto, o bebe não reagia. “Quando o meu obstetra entrou no quarto eu estava muito nervosa, chorando muito, e perguntei pra ele: ‘Doutor, e agora? O senhor fala que estava na hora de fazer a cesariana e o bebê não está reagindo’, e ele olhou pra mim rindo e disse: ’Não se preocupe, vai ficar tudo bem’, como se eu fosse um nada para ele, como se a vida do meu filho não importasse”, contou. Ela relatou que nessa hora se sentiu  abandonada e sozinha e que se desespera ao lembrar que tudo isso aconteceu porque era final de ano e o obstetra iria viajar, então queria que o parto acontecesse logo, por isso recomendou a cesariana tão cedo.  

A mãe também conta que sofreu com a anestesia. “O anestesista furou minhas costas duas vezes e eu falei pra ele que estava doendo muito, a dor era horrível e eu não conseguia me abaixar na posição que o médico mandava, então ele falou alto e grosso: ‘Abaixa mais, assim não vai ter condição’ ,gritando”.

Janete afirma que hoje em dia o seu filho está bem e saudável, mas que se culpa por ter deixado fazerem a cesariana. “Eu carrego essa culpa, eu me culpo o tempo inteiro, o médico deveria ter me orientado. Isso me trouxe traumas que até hoje eu não consigo superar, além de que ainda tenho muita dor na barriga. Vai fazer 10 anos e tem momentos que eu passo o dia inteiro com o barulho da UTI no meu ouvido”, lembra. Ela ressalta que poderia ter evitado todo esse trauma se tivesse o apoio de alguém que falasse que era possível realizar a laqueadura depois, e que não precisava ter feito a cesariana, caso tivesse mais informação sobre o assunto.

A psicóloga neonatal, Nicole Lemos dos Santos, fala sobre a dificuldade em identificar e denunciar a violência obstétrica. Segundo ela, isso acontece devido à falta de informação sobre o que é normal e o que se caracteriza como violência obstétrica dentro de um processo gestacional e de parto. 

Nicole esclarece que a percepção se torna difícil para a mulher devido a situação, na qual ela está com dor, medo, ansiedade e todas as emoções envolvidas no nascimento de seu bebê. Por isso, é muito importante também que o acompanhante esteja bem informado. “A informação sobre os tipos de violência obstétrica auxilia muito na prevenção dessa situação.Tanto a gestante quanto o acompanhante de parto precisam estar bem informados sobre o assunto”. 

A psicóloga alerta sobre a importância de buscar acompanhamento psicológico em casos de violência obstétrica para trabalhar os possíveis traumas e transtornos causados. Além disso, afirma que é fundamental realizar a denúncia. “Isso ajuda muito a diminuir as chances de que aconteça com outras mulheres ou até com elas mesmas novamente. Quanto mais denúncias houverem, mais isso será evitado”, comenta. Nicole pontua a necessidade de transmitir a quem já sofreu esse tipo de violência, que nenhuma mulher tem culpa por ter passado por isso. Os únicos culpados são aqueles que praticaram tais atos. 

Na visão da psicóloga neonatal Verônica Mendes, a violência obstétrica é uma grande causadora da mortalidade materna e do bebê e que isso não é uma questão apenas do parto ou pós parto. “A gente considera como dados da mortalidade materna, tanto na gestação, quanto 40 dias após o parto, quando, por exemplo, a mulher já está em casa e ocorre hemorragia interna, questões de cicatrização e infecção nos cortes”, comenta. 

A profissional também fala sobre as consequências que este tipo de violência pode causar na vida da mãe e do bebê. Segundo ela, além do trauma, pode desencadear diversos transtornos mentais, desde estresse pós-traumático, tocofobia, caracterizado pelo medo de ficar grávida novamente, depressão pós parto e dificuldade de criar vínculo com o bebê. 

O levantamento Nascer no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), aponta que 30% das mulheres atendidas em hospitais privados em 2012 sofreram violência obstétrica. No Sistema Único de Saúde (SUS), a taxa foi de 45%. 

Além do Disque do projeto Doula a Quem Quiser, a violência obstétrica pode ser denunciada  por meio do canal de denúncias on-line  do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) da Defensoria Pública do Estado do Paraná, no Disque Saúde (136) ou no Disque violência contra a Mulher (180).

 

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COMENTÁRIOS

  1. Eu só soube que tinha sofrido violência obstétrica no parto da minha primeira filha, quase cinco anos depois, quando me preparava para o meu segundo parto e buscava uma experiência mais humanizada. Até então, eu não sabia que a privação de movimentos, a episiotomia e a manobra de Kristeller, não eram necessárias. Ouvi o médico dizer ao meu companheiro que estava dando o “ponto do marido”. Mesmo com toda a preparação e o estudo para o segundo, passei por situações constrangedoras novamente. Enquanto finalizava a cesária, que o médico me garantiu ser necessária, ele e a enfermeira comentavam sobre o anestesista que tinha acabado de sair da sala, como se eu ñ estivesse na maca, recém operada e fragilizada. Resultado: precisei passar por uma curetagem na semana seguinte por relapso do médico naquele momento. 13 anos depois, ainda mais conscientizada, com plano de parto escrito e assinado, sofri um toque do obstetra, que causou a ruptura da bolsa forçada. Nunca pensei em denunciar, nem saberia onde na época. Matéria excelente e necessária, meninas!

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