Ainda estou aqui, para que nunca mais se esqueçam

21 anos, 5 mandatos, 210 desaparecidos, 191 mortos e 33 corpos localizados. Estes são alguns dos dados Levantados, que registram um dos mais importantes marcos da história do Brasil e da luta pelos direitos humanos, a Ditadura Militar. O filme “Ainda Estou Aqui” de Walter Salles, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva que leva o mesmo nome do filme, é o recorte fiel desse período que marcou a identidade do nosso país. O longa, que estreou em 7 novembro, conta a história da família Paiva. Rubens Paiva, político, engenheiro, pai e marido, foi um desaparecido político, preso pelos militares durante a ditadura e morto. Em um dia comum, os oficiais da Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), órgão subordinado ao exército, de inteligência e repressão do governo brasileiro durante a ditadura militar, invadiram a casa dos Paiva e Rubens foi levado para nunca mais voltar.

Salles cria o retrato perfeito da família, ele consegue trazer aquele sentimento de pertencimento e sensação de casa sempre cheia. As músicas, as cores, o envolvimento entre os atores e atrizes e tudo o que compõe a cinematografia do filme é capaz de te levar de volta para o Brasil da década de 60 e 70. Assim como a angústia que se perpetua ao decorrer do filme, caracterizada pelo problema que é ter um desaparecido na família: a incerteza. Quantas vezes um desaparecido morre, até ser comprovado que, de fato, ele morreu? Este sentimento de familiaridade, construído durante a evolução do filme, nos possibilita entender a dor e indignação de cada um desses personagens, que, invadidos pela repressão, tem parte de sua história marcada pela brutalidade. E, tem arrancados de si, aqueles que, por algum motivo, mostraram-se contrários a aquilo que, um dia, viria a os matar.

É impossível não falar de Eunice Paiva, que soa como um grito de resistência, de quem tende sempre a continuar a escrever sua história. Ela é a peça central que representa as pelo menos 434 famílias que viveram o mesmo que a sua. Eunice luta e vive o luto em silêncio, a cena em que ela está chorando no escritório ao descobrir a morte de Paiva, e sua filha caçula entra chorando falando que o irmão arrebentou o braço da boneca, reflete a força de Eunice Paiva, ao perceber que a preocupação da filha é a boneca, e ela tem o direito da sua preocupação ser só e apenas aquela. Eunice luta por seu filho e filhas, luta para que nunca mais se esqueçam e para que nunca mais se repita. Eunice é aquela que Ainda Está Aqui.

Não se pode ignorar o trabalho de atuação de Fernanda Torres e Selton Mello. Fernanda e Selton são o elo que amarra uma trama sensível e real a um trabalho de direção igualmente afetivo e verdadeiro. Cada um que está presente no elenco cumpre com maestria seu papel, mesmo aqueles que são peças sutis da trama, fazem parte de um todo que impõem uma experiência e talento que só complementam ainda mais a qualidade da obra. A relação criada pela interação de cada um dos personagens é capaz de transmitir um carinho que ultrapassa as telas e o tempo. Dentre tantos nomes de renome, como: Humberto Carrão, Valentina Herszage, Marjorie Estiano, Olívia Torres, quem não pode passar batida é Fernanda Montenegro, que faz um trabalho excepcional. A atuação de Fernanda é algo impressionante, a maior atriz do Brasil mostra apenas com o olhar o motivo desse título pertencer a ela. As atrizes de primeira mão, Bárbara Luz e Luiza Kosovski, que fazem duas das filhas mais velhas dos Paiva, entregam um papel sensacional que contribui ainda mais para a construção da sensibilidade que é palpável a qualquer um que assiste ao filme.

Fernanda Montenegro, interpretando Eunice Paiva na fase final de sua vida. Imagem: Reprodução

O que nos resta após assistir a Ainda Estou Aqui, é o que Fernanda Montenegro nos revela em seus poucos minutos de tela: um grito de silêncio, pesando em seus olhos e em seu quase sorriso. Um grito de liberdade, que ultrapassa o tempo e a história, para relembrar o que nunca mais pode se repetir.

Entenda quem foi Rubens Paiva e o que o levou a ser um preso e desaparecido político 

*A história de Rubens foi escrita tendo como base o capítulo 7 “As várias mortes de Rubens Paiva” do Livro “Habeas Corpus que se apresente o corpo”

Engenheiro civil e ex deputado federal, Rubens Paiva morava no Rio de Janeiro com sua esposa Eunice e seus 5 filhos. Foi eleito deputado federal em 1962, 2 anos antes do início do regime ditatorial. Participou da CPI sobre o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que promovia propagandas anticomunista e conspirava a favor da queda de João Goulart.

Resultado da CPI

A CPI descobriu, naquele ano, que o IBAD, junto com o seu braço eleitoral, A Ação Democrática Popular (ADEP), movimentaram entre 12 a 20 milhões de dólares em suas atividades conspirativas.

Paiva foi um dos deputados que ajudou a identificar a origem e o destino do dinheiro, que vinha de empresas como Shell, Coca-Cola, Bayer, IBM. Descobriu também o envolvimento de militares da direita favoráveis ao golpe. Após a comprovação das descobertas, o IBAD e a ADEP foram dissolvidos por ordem da justiça em dezembro de 1963.

A Cassação de Paiva 

Quatro meses após a CPI e oito dias após o golpe de abril de 1964, Paiva foi cassado. Exilou-se na embaixada da Iugoslávia e depois seguiu para o leste europeu.

A volta para o Brasil 

Antes do fim do ano, Paiva retornou ao Brasil, foi quando se mudaram para o Rio de Janeiro. No livro “Habeas Corpus que se apresente o corpo”, capítulo sete, existem relatos dos filhos de Rubens, onde contam que no final da década de 60, com o endurecimento do regime, a casa da família serviu de abrigo para diversos militantes da ditadura, e Paiva fazia a movimentação de cartas dos exilados. “Ele fazia essa ponte entre o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e essas organizações clandestinas. Conhecia as famosas rotas de fuga que o PCB tinha. Então, a partir daí, se envolveu com o pessoal para ajudá-los a sair do Brasil. Aí ele caiu”. Conta Marcelo Rubens Paiva no livro.

A Prisão

20 de janeiro de 1971. Seis homens invadiram a casa de Rubens e o levaram para o quartel da 3ª Zona Aérea. A partir disso, tudo o que existe pelas próximas duas décadas e meia seguintes são relatos de pessoas que dizem o ter visto.

O médico do DOI, Amílcar Lobo, que acompanhava as vítimas de tortura, na madrugada do dia 21 para o 22, relatou para a revista Veja, 15 anos depois, ter sio acordado em casa e levado para o quartel, quando chegou na cela viu um preso deitado e sem roupa. ‘“Era uma equimose só. Estava roxo da ponta dos cabelos à ponta dos pés. Ele havia sido torturado, mas, quando fui examiná-lo, verifiquei que seu abdômen estava endurecido. (…) Suspeitei de que houvesse uma ruptura do fígado ou do baço, pois elas provocam uma brutal hemorragia interna’, O preso só repetia o nome: Rubens Paiva. “Eu nunca havia presenciado um quadro desse tipo. Aquele homem levara uma surra como eu nunca vira”, disse o médico. Ao sair, aconselhou um oficial que o levassem para o hospital. No dia seguinte foi avisado de que o paciente falecera.

O atestado de Óbito

Depois de quase 25 anos, no dia 4 de dezembro de 1995, o atestado de óbito de Rubens Paiva foi finalmente expedido. Nunca foi comprovado como, quando e onde Rubens Paiva Morreu, ninguém jamais foi punido por sua morte.

*Os dados do início do texto são da comissão nacional da verdade

 

Por Natalia Almeida e Julia Almeida

 

 

 

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