COTAS: sobre discriminação e Constituição.

Quer se goste ou não, as cotas são uma realidade, seja nas Universidades, nos concursos da Administração pública, ou mesmo nas empresas privadas. Basicamente, as cotas reservam uma quantidade de vagas, segundo algum critério (raça, renda, sexo, gênero, existência de algum tipo de deficiência física, etc.), possibilitando que as pessoas daquele grupo concorram entre si, em paralelo às demais não enquadradas naquela categoria. Os que discordam desta política, em geral, argumentam a partir de duas bases: a jurídica e a discriminatória.

A primeira se daria no sentido que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu Art. 5º, determina que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza […]”. Tal conceito é o de igualdade formal, típico da primeira dimensão de direitos humanos (tratado na coluna anterior – “Direitos humanos é coisa de esquerda?”), concretizando os mesmos direitos de propriedade, liberdade, votar e ser votado, dentre outros para diferentes pessoas. Isso porque as pessoas são iguais, certo?

Contudo, a própria Constituição também nos diferencia, ao reconhecer, no Art. 7º, XX, o direito de “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”. E o artigo 203 determina a prestação da assistência social para amparar crianças e adolescentes carentes (inc. II), bem como a garantia de um “salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família” (inc. V). Ora, por que as mulheres, pessoas com deficiência, idosos, crianças e adolescentes carentes têm estes direitos, não garantidos da mesma forma à, por exemplo, um homem de classe média?

Porque somos, simultaneamente, iguais e diferentes. Iguais no que nos torna todos humanos, ou seja, animais dotados de racionalidade. Mas também nos diferenciamos, por sermos homens ou mulheres; negros ou caucasianos; portadores ou não de deficiências; hetero, homo, bi ou transexuais, dentre outras inúmeras classificações e critérios.

Neste sentido, a própria realidade já desmonta o segundo argumento dos contrários às cotas, de que elas promoveriam uma maior discriminação. Convenhamos, as cotas não tornam alguém preconceituoso, pois este preconceito já existe; e existe por uma consideração negativa das classificações sociais mencionadas. Enfim, negar os referidos “rótulos” seria desconsiderar a própria realidade. Uma realidade que, aliás, é perversa com aqueles que não se enquadram na noção do que é mais aceitável socialmente (homem, hétero, branco, com boa renda), de modo que as cotas promovem maior convivência entre indivíduos que, normalmente, encontram-se segregados geográfica e socialmente. E um modo de combater o preconceito é justamente pelo convívio, humanizando e normalizando o “outro”.

No Brasil de hoje, “as mulheres recebem, em média, salários 30% menores que os homens quando ocupam os mesmos cargos e com a mesma formação. Para as mulheres negras o cenário é ainda pior: recebem menos de 60% dos salários dos homens brancos e possuem renda média mensal 40% menor que a renda média das mulheres brancas”1. No campo da violência, segundo o IPEA, “a estimativa é que os cidadãos negros tenham um risco 23,5% maior de sofrer assassinato em relação a outros grupos populacionais”2. E a “expectativa de vida de uma Mulher Transexual ou de uma Travesti é de apenas 35 anos, 80% dos assassinos não tem ligação com a vítima e 95% destes assassinatos apresentam requintes de crueldade”3.

Daí que as cotas (e outras ações afirmativas) fazem, sim, uma discriminação a partir de um certo critério escolhido, mas uma discriminação positiva, numa tentativa de concretizar a segunda dimensão de direitos humanos, de modo a (ao menos, tentar) concretizar uma igualdade material, substancial. Em outras palavras, as oportunidades de alguém que sofra preconceitos diários, seja alvo preferencial de violência e tenha uma renda menor são, obviamente, menores do que uma pessoa que nasceu em uma família bem estruturada e com boa renda. A probabilidade deste obter uma boa nota no vestibular é maior do que a do outro e, diante disso, as cotas se justificam, até porque, depois de inserido no ensino superior, os dados mostram que o desempenho entre cotistas e não cotistas se equivale4.

Mas, ainda mais importante, as cotas também servem para mudar a situação de invisibilidade social pela qual passam os beneficiados pelas cotas. Se você já frequentou uma escola ou universidade, eu pergunto: quantos dos seus colegas e professores eram negros ou LGBT assumido? Quantas presidentes de grandes firmas são mulheres? E quantos representantes destas minorias são representantes políticos? Ora, o melhor meio de tornar as minorias visíveis ainda é a inserção no mercado de trabalho, e o caminho para se chegar a isso é uma boa formação (tanto fundamental quanto superior). Neste sentido, hoje se discutem, além de cotas raciais e de renda, aquelas para pessoas transgênero5, de modo a tentar promover a igualdade material a todos os humanos, independentemente de como elx é classificadx pela sociedade.

Por último, é preciso salientar que quase não há discordância, entre os defensores das cotas, de que esta deveria ser uma política temporária. Porém, enquanto durarem as condições que fundamentam oportunidades desiguais a seres igualmente humanos, elas se mostram necessárias. E muito bem-vindas, inclusive porque iniciam debates sobre preconceito, direitos e igualdade.

Pedro Miranda

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