Coluna: “Cancelem o carnaval”: uma preocupação seletiva e racista

As redes sociais observam (ainda sem saber de onde vêm) uma escalada de postagens (algumas delas até mesmo patrocinadas) pedindo o cancelamento do carnaval de 2022 por prefeitos e governadores, apoiando-se numa perspectiva apocalíptica em relação a futuros casos de COVID-19 com a manutenção da programação das festividades. Nosso diálogo aqui não está interessado em advogar a favor da realização do carnaval passando por cima da ciência, uma vez que entendemos que quem garantirá ou não a realização da festa são os estudos e pesquisas de viabilidade e segurança sanitária. Somos provocados a rechaçar o oportunismo de muitos políticos e celebridades conservadoras em atacar uma manifestação popular cultural, política e comercial.

O carnaval é brincado de maneiras distintas Brasil afora, por isso, peço licença para refletir a partir das escolas de samba. Sobre elas, lembre-se que as comunidades não desfilaram em 2021 e muitos baluartes levantaram a voz e pediram respeito à ciência quando as autoridades buscavam encontrar algum “jeitinho” para realizar o evento.

Observem que a manifestação anticarnaval vem, majoritariamente, de uma parcela da população que se opôs à maioria das medidas de combate ao coronavírus ao longo da pandemia. Desde o uso da máscara, o isolamento, o distanciamento, a vacinação e, mais recentemente, o passaporte de vacina. Fato que nos leva a olhar essa manifestação por outra lente, percebe-se que nada mais é do que um posicionamento racista, intolerante e conservador. Utilizam-se da solidariedade pelos mortos para justificar que “não há clima para festa”. Os mesmos que outrora diziam que a vida não podia parar. O carnaval vem justamente para celebrar a vida, vida que é dura, não idealizada como prega o capitalismo e as redes sociais. Celebrar a vida também daqueles que se foram, o samba perdeu figuras ilustres e anônimas nos últimos anos, inclusive para o coronavírus e, também, não pôde despedir-se do seus, os desfiles de 2022 serão um grande gurufim em memória dos bambas que nos deixaram: Laíla, Dominguinhos do Estácio, Tantinho da Mangueira, Nelson Sargento, Mestre MUG, David Corrêa, Dona Neném, Djalma Sabiá, entre tantos outros. Ainda sobre a vida dura e a necessidade de celebração, Luiz Antônio Simas, historiador das culturas e manifestações miúdas e populares, diz que o povo faz festa não porque a vida está boa, justamente pelo contrário. A Unidos de Vila Isabel, ao homenagear Martinho da Vila, tem um verso no seu samba que resume bem o espírito do carnaval pós-pandemia: “Tão bom cantarolar, porque o mundo renasceu… Me abraçar com esse povo todo seu”.

Voltemos à compreensão que fundamenta a campanha racista e intolerante “Cancelem o carnaval”: as escolas de samba e o carnaval de rua, na sua gênese, são obras do povo preto, marginalizado, periférico. Evoca liberdade do corpo e de expressão, contra a dominação e domesticação. É uma campanha que aciona a intolerância religiosa visto que o pentecostalismo não aceita uma manifestação que não nasce dentro dos seus fundamentos, veja as escolas de samba surgindo dos terreiros de Candomblé, saudando seu Orixá nos toques da bateria, que traz toda ancestralidade na saia da Baiana, que ensina, aprende e se estrutura com as sabedorias de África. Ou seja, uma festa que uma sociedade racista, escravocrata e fundamentalista não suporta.

Dos 26 enredos que estão sendo preparados para tomar a Sapucaí, no mínimo 16 tem ligação explícita com o povo negro. Figuras como Milton Gonçalves, Chica Xavier, Mãe Stella de Oxóssi, Besouro Mangangá, Candeia, Cartola, mestre Delegado e Jamelão serão homenageados. 2022 será um ano para “empretecer o pensamento”, como defenderá na Avenida a Beija-Flor de Nilópolis.

O que se nota é uma preocupação pandêmica seletiva, justa para aqueles que sempre defenderam as medidas de proteção e combate ao vírus e também uma preocupação nossa, tão nossa que há meses, dirigentes, autoridades e cientistas vêm discutindo como e com quais indicadores o Rio de Janeiro poderá receber os foliões. Preocupação nossa, pois o carnaval não é só festa, é ancestralidade, cultura, história, pedagógico, e também turismo, emprego. Cuidar dos nossos, de quem faz e curte a festa é primordial. 

Com essa preocupação, a Comissão Especial de Carnaval da Câmara dos Vereadores acredita que o Rio está perto de atingir os critérios estabelecidos para que as festividades aconteçam em 2022, índices que observam desde a estrutura e disponibilidade da Saúde da cidade para atender a população até a porcentagem de cariocas vacinados. Prevê-se que na época do carnaval quase metade da população e 70% dos adultos estarão vacinados com a terceira dose. Recomendam ainda o passaporte da vacinação para turistas brasileiros e do exterior, medida que ainda não foi implementada pelo governo Bolsonaro e muito atacada por seus seguidores que evocam o “direito de ir e vir”.

Sabemos que não é proveitoso deslocarmos o debate para olhar o quintal ao lado, mas é uma reflexão que fica guardada as devidas proporções: estádios, teatros, shows, igrejas, autódromos estão funcionando com 100% da capacidade de público e não há oposição pelos críticos do Carnaval. Réveillon, Futebol, Rock in Rio, Fórmula 1 e rodeios são medidos com a mesma régua? O carnaval com grandes aglomerações só acontece em alguns pontos do país. As festividades natalinas, por exemplo, não. Pelo contrário, ocorrem em todos os cantos do Brasil, desde cidades pequenas do interior até grandes metrópoles. Haverá cancelamento das festas de fim de ano? 

“Cancelem o carnaval” é uma manifestação racista, intolerante e de classe. O capitalismo impôs que milhares de pessoas pegassem transporte público lotados todo dia durante a pandemia e no auge da contaminação (como foi em março de 2021), para que não houvesse mortes de CNPJ. Hoje, querem o contrário, justamente quando a ciência sinaliza a queda na transmissão, no número de casos ativos e no de vítimas. É escancarar e reafirmar a postura anticiência que levou a mais de 600 mil mortes no Brasil. Estavam contra ela no começo da pandemia e continuam jogando contra a ciência no seu processo de superação. 

Outro fato importante, celebra-se a retomada do turismo no país. A mídia capitalista sinaliza os “hotéis lotados” para os feriados e festas de final de ano. Carnaval é um ramo de trabalho que emprega diretamente pessoas o ano inteiro, como é o caso dos barracões das escolas de samba, mas também criam postos de trabalho temporários, veja os comerciantes de bebida nos blocos “cerveja 3 por 10”, por exemplo, gerando e injetando um montante considerável de dinheiro na economia do país. Mas, aparentemente, não é um trabalho necessário? Visto que não se valoriza, nem reconhece, tampouco legitimam.

Para finalizar, o jornalismo hegemônico comprou a ideia. Exploram o fato de que mais de 70 cidades paulistas, por exemplo, já cancelaram a festa. Mas de maneira pouco crítica observam qual a densidade e penetração do carnaval nesses municípios. Quais cidades são essas? Havia Carnaval antes da pandemia? Em que proporção? Qual posição político-ideológica da gestão da Prefeitura? Muitos pequenos municípios vêm há anos cancelando as festividades carnavalescas por motivos financeiros. Festividades que se resumem, na grande maioria, a um “show” na praça pública. Será que estão preocupados em cancelar aquilo que realmente aglomera gente em seus municípios: rodeios, shows sertanejos, cultos, eventos gospel, etc?

Fato é que, graças à vacinação, o que se vivencia é um ambiente mais seguro e possível de realizar a festa. Caso as autoridades científicas e sanitárias apontem a necessidade do cancelamento, não tenham dúvidas que as escolas, os sambistas e os foliões vão respeitar como respeitaram em 2021, pois têm compromisso com a vida, com a arte e a cultura.

Fica o desejo que em 2022 celebremos a vida, a cultura popular, a arte negra e periférica e coloquemos nossos corpos (vacinados) na rua em movimento.  

Colunista: Felipe Collar Berni 

é jornalista, professor, pesquisador e educado pelas escolas de samba

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