Confira o documentário “Tarde Demais para Flores” produzido em 2019 pela então estudante do curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) Saori Honorato e a entrevista realizada com ela durante a apresentação do documentário em março de 2020, no saguão do Bloco B da Universidade. A exibição fez parte do evento Mulheres e direitos: enfrentamento de violências múltiplas, organizado pelo grupo de pesquisa Jornalismo e Gênero da UEPG.
A produção reflete os danos que o feminicídio causa no dia a dia da vida dos familiares das vítimas.
Documentário:
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Entrevista:
Matheus: Qual foi a motivação que você teve para realizar esse documentário?
Saori: Então, eu acho que começou quando eu fui pensar a pauta do que eu queria trabalhar no meu TCC, eu queria fazer alguma coisa que tivesse alguma relação específica. Acho que ser jornalista, ser mulher fez total diferença na escolha da pauta para falar sobre o feminicídio, até pela jornada que cada pessoa tem na sua vida, na carreira que na hora da produção te incentiva a se especializar em um assunto específico. Acho também que mais um fator é, a gente está vivendo um surto de feminicídio, mas acho que agora estão saindo muitos, principalmente casos do interior, aqui nos Campos Gerais, toda semana praticamente tem notícia, não só de feminicídio, mas de mulheres sendo agredidas e os números estão crescendo bastante, e não é só aqui no Paraná, é no Brasil inteiro. Os números não diminuem, eles crescem apesar de existir mais ações para coibir a violência, sendo essas as estatísticas e também a cobertura que a imprensa tradicional já faz desses casos de feminicídio. E acho que o que me criou um incômodo muito grande, que ficou marcado durante toda a minha graduação era que eu não queria repetir, sendo que eu teria um espaço, um tempo determinado para a explorar uma produção específica, eu achei que era o momento de abordar.
Matheus: A gente percebeu que durante a exibição do documentário as pessoas ficaram bem emocionadas e eu acho que é um documentário muito sentimental, algo que realmente mexe, nos faz perceber várias coisas. Como foi a repercussão do documentário na cidade? Nas escolas que você foi mostrar e nas exposições que você teve desde o documentário
Saori: Como ele foi exibido em diversos lugares, foi na universidade, foi no museu Campos Gerais, além das escolas. Deu para sentir que as pessoas têm o mesmo incômodo que eu tenho com as notícias que já são dadas, porque até você oferecer uma outra perspectiva é um refresco para as pessoas conseguirem realmente falar sobre o feminicídio e os crimes. Acredito que a função do jornalismo é justamente essa, trazer o debate, não você ser o debate. Então, eu acho que conseguir trazer pessoas de diferentes esferas da sociedade, por exemplo, vieram pessoas do Juizado da Mulher, que o Fórum atua, da Delegacia da Mulher, que é a parte mais prática, do CEJUSC, que é um contato de justiça restaurativa. Então diferentes pessoas, como psicólogas e advogadas, que trabalham numa rede de enfrentamento conseguiram se aliar nesses espaços e conversar sobre e trazer outras reflexões que geralmente a gente não tem espaço ou que não é incentivado a fazer. Já nas escolas, eu constatei que a violência doméstica está presente na realidade de diversas famílias e que uma parcela muito grande das crianças e dos adolescentes estão inseridos no contexto de violência dentro de casa ou sofrem com um relacionamento, não só a violência física, mas principalmente psicológica que é o reflexo de uma sociedade machista que impregna diversos fatores que interferem muito na vida das pessoas. E em um dos colégios foi muito tocante, pois depois da exibição do documentário, as pessoas virem dar depoimentos do que elas passam e até pedir ajuda, porque muitas coisas não chegam até essas pessoas, apesar de ter uma rede de enfrentamento que cria campanhas, que cria diversas patrulhas, as pessoas não sabem para quem pedir ajuda, então apesar de a gente que está nesse contexto de informação, a realidade das pessoas é completamente diferente.
Matheus: Em relação às famílias, principalmente as crianças, acho por mais que tenham crianças pequenas que ainda não entendem muito bem o que está acontecendo, mas realmente sentem. E o que você achou e como foi essa relação com as famílias?
Saori: Bom, a ideia de abordar famílias foi para ver o impacto do feminicídio a longo prazo, porque a gente tem empatia, mas nós continuamos vivendo as nossas vidas normalmente, mas as pessoas das famílias que foram afetadas pelo feminicídio, é uma dor que eles têm diariamente. Até uma das participantes do documentário, a Célia, falou “sempre que eu vejo uma notícia de feminicídio de outra pessoa é como se eu estivesse sofrendo tudo de volta, é como se fosse a minha filha sendo morta outra vez”. Então essa sensação que eles têm, ela nunca vai passar e você consegue sentir a tristeza dessas famílias. As avós dizem que o único motivo delas para continuarem vivendo é cuidar dos netos, porque perder a filha de uma maneira tão violenta, não é só perder um filho, é ele ser assassinado “assim, assim e assado”. E até no caso das cinco crianças, eles viram a mãe ser morta pelo próprio pai, então é algo muito traumático para essas crianças e que sem dúvida vai trazer diversas sequelas, emocionais e psicológicas, durante a vida inteira delas. Então falar sobre o feminicídio na perspectiva dessas famílias faz a gente ter ainda mais empatia por esses crimes, além de falar que quem foi morta e como, mas sim falar quem que sofre com isso, quem que ficou e como é a vida das pessoas depois desse crime.
Catharina: Você citou uma instituição que te ajudou a chegar nas fontes utilizadas no documentário. Você acredita que outras instituições deveriam auxiliar, gratuitamente, essas famílias que estão sofrendo com a perda da vítima?
Saori: Já existem instituições que prestam serviços. Quando a mulher é vítima da violência ela passa por diversas instâncias, primeiro ela vai para o juizado que tem uma assistente social, mas ela não consegue atender todo mundo, então eu acho que as instituições deveriam prestar mais atenção nessas vítimas, mas também prestar atenção a longo prazo, porque o atendimento é muito limitado e específico quando ele acontece. E as mulheres, muitas vezes, querem denunciar, mas não sabem o que vai acontecer. O NUMAPE da UEPG é um exemplo muito bom de instituição que presta um serviço para essas mulheres que faz toda diferença, que salva vidas, até porque como eu já falei, o feminicídio é o ápice de uma longa trajetória de violência doméstica. Então ter instituições que cumpram esse papel de uma maneira mais prática, porque o CEJUSC faz toda diferença em Ponta Grossa, mas não toda cidade que tem essas instituições. Outra coisa que eu acho muito importante é essas famílias que ficam, porque, por exemplo, uma mulher perde a filha, está em um contexto de desemprego, não tem nenhuma seguridade social, ela recebe uma aposentadoria de mil reais e sustenta uma família de três pessoas, isso foi antes do feminicídio da filha. Então depois disso, tem que criar mais cinco crianças, sendo assim, como que uma pessoa vai sustentar uma família de oito pessoas com mil reais? Que é o contexto da Soeli e ela é bipolar, tem depressão e ela sustenta uma família de oito pessoas e tanto que depois que aconteceu o feminicídio da filha dela, ela ficou totalmente deprimida só que foi uma depressão que ela teve que lutar contra para continuar vivendo e protegendo a família, então ela fazia salgado e saia vender na rua. São essas pessoas que eu consegui comprovar que precisam de uma atenção e de um amparo social, porque ninguém olha para as pessoas que ficam. Teve o feminicídio, a mulher morreu e acabou aí. Não tem nenhuma lei que fale que as pessoas que ficaram devem ser atendidas. Tem a Guarda Solidária que quando as crianças morrem a família recebe uma bolsa de mil reais por mês, só que mesmo assim não é suficiente para essas famílias. Todas aquelas mulheres sofrem em relação à vida financeira enquanto elas têm que encarar o luto da perda da filha, então é bem complicado.
Catharina: Como jornalista, qual a importância do jornalismo para tratar do feminicídio?
Saori: É fundamental o papel do jornalista de fazer o debate acontecer. Acho que é muito mais do que relatar que uma mulher foi morta é você falar o porquê ela foi morta, em que contexto ela está inserida que fez isso acontecer, porque o feminicídio não é um assassinato comum, ele não acontece como em um roubo que a pessoa só morre, o feminicídio acontece, porque os homens continuam achando que são superiores as mulheres e isso é uma questão que não dá para a gente relevar e falar que não existe. Então não dá para o jornalismo falar sobre o feminicídio, falar sobre a violência contra a mulher sem abordar essas questões históricas que continuam fazendo com que as mulheres sejam mortas pelo feminicídio, até porque o feminicídio ele é um resultado do machismo e o jornalista em que ficar pegando nisso, porque é impossível você falar sobre feminicídio e violência contra a mulher sem você falar sobre machismo. E uma coisa que é perceptível, o jornalista não cumpre essa função de explicar isso para as pessoas, porque se você só dá essa notícia e falar que a mulher foi morta, aí as pessoas vão pensar “ela fez alguma coisa, porque ela traiu o cara ,então está tudo beleza”, só que não está “tudo beleza” e daí se ela traiu? Isso é justificativa para ela morrer? E muitas vezes a mídia ao invés dela trazer um debate qualificado ela faz justamente o oposto, ela culpa a vítima, traz uma série de informação que não são importantes, por exemplo “estava com roupa curta, em um determinado lugar e em um determinado horário”, a mídia pode falar “ela morre por causa disso”, mas é o que ela está falando, é o que todas as pessoas vão falar, porque as pessoas convivem com essas notícias a vida inteira, elas não têm discernimento de falar “a não isso aqui ela está em um contexto de violência” e isso não é abordado no jornalismo e deveria ser mais abordado. Está tendo um movimento melhor da mídia de tentar explicar isso, que é um reflexo do movimento da sociedade contra o machismo, mas que ainda é precário e principalmente, cidades do interior praticamente esse movimento não existe. E Ponta Grossa ainda tem programas específicos extremamente sensacionalistas que só trazem dor e sofrimento para essas famílias, não é um jornalismo que só notícia, é um jornalismo que também danifica as famílias e causa dor.
Matheus: Tem muitas pessoas que defendem essa nova aproximação do jornalista com a fonte e como é feita essa relação, mas neste trabalho percebe-se que você realmente teve que se aproximar, teve que estar perto e teve que ter um contato muito próximo e muito sentimental. E eu queria saber como você vê essa relação com os entrevistados e o que você sentiu nessa relação com os entrevistados?
Saori: Esse contato direto com as pessoas ele tem que acontecer independente da pauta que você está fazendo e independente do assunto, é uma questão mais humana de contato social, não dá para querer falar sobre qualquer assunto sem você ter um contato com a pessoa, sem ser respeitosa e entender limites, porque foi um processo muito lento de eu explicar o que eu estava fazendo, fazer um visita, fazer outra visita ou você entender os momentos que a pessoa está confortável para falar, não está confortável. Então eu acho que o jornalista, nessa questão de proximidade ela tem que acontecer independente da pauta, mas principalmente quando é uma pauta que a violência, aborda assuntos que são sensíveis, esse contato precisa ser ainda mais profundo e cuidadoso. O que eu tentei muito fazer foi respeitar os limites das pessoas, ganhar confiança e fazer parte daquele ambiente. Acho que até uma questão mais da fotografia jornalística do que o jornalismo em si na hora da entrevista que as pessoas vão entrevistam, fazem algumas perguntas e ponto, mas esse contato mais direto, apesar de no começo você não entender muito bem o porquê que você precisa fazer tudo isso, ele traz resultados significativos na produção a longo prazo, até para eu conseguir ter acesso a outras histórias, para ela se sentir mais confortável em falar, por exemplo eu sei de coisas que eu nunca poderia colocar no documentário ou tirar foto, então eu acho que esse contato fez total diferença e eu acho que é papel do jornalista ele ser empático, respeitoso e sensível nas produções.
Catharina: E você sendo mulher e estando nesse lugar de risco, que essas mulheres que sofreram estavam. Como que o documentário impactou a sua vida nesse sentido?
Saori: Pessoalmente, eu consigo quando leio uma notícia, ter outras reflexões que eu não teria se eu não tivesse feito esse documentário, e também pensar outras perspectivas, acho que essa é a palavra, perspectiva, porque não é todo dia que, por exemplo um jornalista em uma redação não consegue fazer um trabalho desse, ele tem limitações e também é um tipo de jornalismo diário que você tem que fazer, é o seu papel noticiar o que acontece, mas eu acho que para mim foi importante pensar que não é só esse papel que tem o jornalista, acho que também que é papel dele fazer produções mais complexas, mais longas em paralelo com esse tipo de jornalismo que a gente já está mais acostumado, acho que esse jornalismo de profundidade, mais humanizado, mas eu não gosto dessa palavra, porque eu acho que o jornalismo tem que ser humanizado de qualquer maneira. E a experiência de você entender que as pessoas sofrem demais por causa disso, acho que me fez mais combatível com as coisas que eu vejo na minha vida e ao meu redor, eu não tolero mais qualquer coisa. Eu nunca fui feminista “loucaça” e não estou falando de um modo pejorativo, mas é você policiar coisas que você vive no dia a dia que antes você não policiava, que eu achava mais normal. Então pessoalmente, foi um ganho muito grande profissional, mas também pessoal, para minha vida, de valores que eu comecei a ter para mim que eu acho que eu nunca mais vou perder, que talvez eu não teria desenvolvido se não fosse a produção.
Entrevista por Matheus Rolim e Catharina Iavorski
Imagem: Reprodução documentário “Tarde Demais para Flores”