Entrevista com Danieli Klidzio, licenciada e mestranda em Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), e administradora (juntamente com a pesquisadora Helena Monaco) do perfil @bi_blioteca no Instagram.
Nos últimos anos você tem percebido distorção do verdadeiro significado da bissexualidade? Afinal, qual é a definição mais adequada para ela?
É difícil falarmos em um “verdadeiro significado” de uma sexualidade ou identidade, assim como talvez não seja ideal que busquemos “a origem” de tudo, mas sim, é importante pensarmos nas construções sociais, culturais e políticas de uma identidade. Nesse sentido, destaco que compreendo a bissexualidade como possibilidade de atração sexual e/ou afetiva sem distinção de gênero ou por todos os gêneros. Portanto, é importante dizer que não se trata apenas da atração por homens e mulheres, pois essa seria uma definição binária e distorcida que nunca foi a colocada pelo movimento social bissexual (nem no Brasil nem no mundo).
Quais os principais estereótipos que as pessoas têm a respeito dos bissexuais? Como isso interfere na visibilidade da sexualidade?
É comum que pessoas bissexuais sejam percebidas e tratadas a partir de um olhar de desconfiança, como se fossem indecisas ou impuras e traidoras, porque, justamente, não estão dentro do parâmetro de desejo e comportamento que foi construído como ideal. Em função disso, bissexuais também sofrem constantemente uma imposição externa para que “se decidam” porque a bissexualidade é vista como apenas uma fase de experimentação ou de necessidade de amadurecimento da sexualidade. Isso se dá porque a percepção sobre a sexualidade que temos compreende a sexualidade de forma binária, como se quem não se identifica como heterossexual só possa ser, então, gay ou lésbica. A bissexualidade não é tomada como pressuposto, e com os estereótipos sobre ela, o que se tem é um reforço de um “não-lugar” para a bissexualidade.
Existe um apagamento ativo sobre a bissexualidade. Também é importante lembrar que o problema não são os estereótipos em si, mas a forma como eles servem para retroalimentar apagamentos e violências sobre as subjetividades de pessoas bissexuais. A bissexualidade não diz respeito e não pode ser definida em função da roupa e aparência que a pessoa tem, muito menos em função de com quem a pessoa se relaciona afetiva e/ou sexualmente.
A partir de que ponto a bifobia começa? Ela é naturalizada/apagada na sociedade?
A bifobia pode começar de muitas formas e pode ser difícil de ser identificada e mais ainda de ser denunciada, justamente por conta do apagamento. Então, acho que poderíamos dizer que a bifobia começa (e também termina) com atitudes de apagamento e invisibilização, seja sobre as lutas históricas de bissexuais junto ao movimento LGBTQIAP+ e das pautas políticas da bissexualidade, ou também sobre as pessoas cotidiana e intimamente nas relações sociais/sexuais quando a bissexualidade é desconsiderada/apagada/violentada. Com isso, digo que além do apagamento ser o ponto onde a bifobia começa, é também onde ela termina. Isso se dá porque existe um círculo vicioso: com o apagamento da bissexualidade é reforçada a percepção de que não existem bissexuais na sociedade, de que bissexuais não são parte da comunidade LGBTQIAP+, de que não existem movimentos sociais bissexuais e, consequentemente, a bifobia é naturalizada ou não é percebida como além de uma falácia porque mesmo existindo espaços de debate e acolhimento, eles não são encontrados por bissexuais. Há uma tendência ao isolamento das pautas e das pessoas bissexuais.
Você pode citar exemplos das situações mais comuns que afetam a saúde mental de bissexuais? As pessoas têm dado atenção para o assunto?
Existe uma grande variável para pensarmos o que pode afetar a saúde mental de bissexuais, mas um dos principais fatores acredito que seja o isolamento e a falta de amparo e compreensão acerca do mais primordial que é a existência da bissexualidade. Duvida-se da existência da bissexualidade. É extremamente adoecedor que pessoas bissexuais sejam questionadas constantemente e tenham sua sexualidade policiada por conta de estereótipos e de violências e micro violências que vêm, inclusive, de dentro de ambientes considerados de acolhimento para pessoas LGBTQIAP+. Dói muito mais quando você não é reconhecida e precisar impor-se para dizer “eu existo, sim!” em ambientes que se colocam como acolhedores de diversidades.
“Dói muito mais quando você não é reconhecida e precisar impor-se para dizer “eu existo, sim!” em ambientes que se colocam como acolhedores de diversidades.”
A grande questão é que precisamos tratar mais sobre outras orientações sexuais dentro da comunidade LGBTQIAP+, porque somente a homossexualidade é vista. Por exemplo: pouco se pensa que bissexuais também são LGBTs, independentemente de com quem estão se relacionando. Pessoas trans e travestis também encontram pouco reconhecimento em meio à comunidade LGBTQIAP+ em relação às suas sexualidades, afinal, pessoas trans e travestis também podem existir enquanto bissexuais, por exemplo.
Além disso, a preocupação com o adoecimento psicossocial e o reconhecimento de pessoas bissexuais não pode ser resumida a quando bissexuais estão em relacionamentos com alguém do mesmo gênero. Bissexuais não existem como uma parte hétero e uma parte homossexual. A bissexualidade é em si uma identidade específica com demandas específicas e por isso a bifobia precisa ser primeiramente reconhecida, pra que tenhamos políticas públicas que se preocupem com as demandas de bissexuais.
“Bissexuais não existem como uma parte hétero e uma parte homossexual. A bissexualidade é em si uma identidade específica com demandas específicas e por isso a bifobia precisa ser primeiramente reconhecida”
Quais atitudes podem combater a bifobia?
Para combater a bifobia, assim como quando se trata de outras formas de preconceito, é preciso buscar conhecer o que as pessoas bissexuais têm dito sobre suas demandas e enfrentamentos. Entender as condições que uma identidade social e as pessoas que com ela se identificam dizem e denunciam é fundamental. É na medida em que aprendemos a respeito e nos aproximamos das discussões, que temos condições de estranhar atitudes de discriminação/silenciamento que eventualmente podemos ter. Afinal, nenhuma pessoa é isenta de reproduzir preconceitos, mesmo em meio à comunidade LGBTQIAP+ e é fundamental entendermos isso para que possamos avançar coletivamente e produzir espaços de acolhimento e escuta de verdade, e não apenas de tolerância de determinados corpos e identidades. Buscar conhecer mais sobre o assunto é sempre a melhor saída, em fontes confiáveis: a partir de pessoas de movimentos sociais e pessoas bissexuais que fazem pesquisas acadêmicas, por exemplo, mas também entendendo que são debates em construção.
É possível que os bissexuais tenham mais voz e tenham mais apoio na questão da saúde mental em meio às opressões vividas e a sociedade em que nos encontramos? Como podemos lutar para melhorar nessas questões?
É totalmente possível que bissexuais tenham mais voz. Aliás, bissexuais há muito tempo estão “falando”, mas é necessário que suas vozes sejam ouvidas. Essa é a questão. Como a própria existência da bissexualidade é questionada parece que caímos em um círculo vicioso de demanda para que bissexuais sempre afirmem o básico. Há uma solidão com a falta de outras referências bissexuais, seja em suas localidades ou em personagens na mídia e na literatura. Por isso acredito que uma das formas de melhorarmos nessa questão é nós bissexuais buscarmos saber mais sobre nossa história, sobre o movimento bissexual brasileiro, sobre as pesquisas acadêmicas. É importante buscarmos referências bissexuais em nosso cotidiano, mas não para que possamos nos ver como iguais porque é difícil que exista isso na bissexualidade tão fluída e diversa em si, mas é preciso buscarmos apoio na coletividade e construirmos espaços sociais de acolhimento e escuta, pois é assim que nos fortalecemos. Aliás, foi por isso que eu e Helena Monaco criamos a Bi-blioteca – um perfil de divulgação científica sobre bissexualidade no Instagram, e dentro da Bi-blioteca também criamos o Clu-bi – um clube de leitura com encontros mensais para lermos e discutirmos sobre literatura brasileira com protagonismo bissexual. São caminhos essenciais para que possamos nos unir e nos fortalecer, mas visamos e consideramos extremamente importante apoiar e receber o apoio de outros grupos e de outras lutas coletivas, porque as pautas se interseccionam e para que ninguém fique sempre falando sozinho. As articulações bissexuais brasileiras têm forjado espaços e há muito conteúdo de qualidade sendo produzido sobre a bissexualidade. Para quem tem conta no Instagram recomendo os perfis: @bi__blioteca – https://www.instagram.com/bi__blioteca; @gaebi_pa – https://www.instagram.com/gaebi_pa; @entreinvisibilidades – https://www.instagram.com/entreinvisibilidades; @binamidia – https://www.instagram.com/binamidia; e o perfil da Frente Bissexual Brasileira – https://www.instagram.com/frentebissexualbr/ que está organizando o II Festival Bi+ nos dias 25 e 26 de Setembro, que será transmitido no canal do Youtube chamado “Frente Bissexual Brasileira”.