Numa Javert, há uma Madureira

Por João Pimentel


A capital do leite é uma cidade majoritariamente conservadora. Não por acaso, o agronegócio  influencia o posicionamento político de Castro a cabresto. Nesse contexto machista, ser da comunidade LGBTQIAPN+ significa vivenciar experiências constantes de preconceito. Já presenciei, embora apenas verbalmente, cenas nas quais o desprezo tomou conta da situação. Lembro de uma vez que meus familiares, em um almoço comum de domingo, começaram a falar de um
traveco com as unhas compridas e sujas. Nunca dei muita atenção a esse tipo de comentário, mas esse ficou na minha cabeça por um tempo. 

Mas nada nessa vida tem um lado só. Mayka Wogue Carneiro Rodrigues, uma mulher transgênero, é a madureira da cidade. A palavra madureira pode ter inúmeros significados. Um deles é: pessoa feminina amadurecida de forma íntegra, dura na queda, sábia; o outro é: derivação de madureiro, lugar usado para amadurecer frutos. Na cidade do interior do Paraná, todos conhecem Mayka, que, assim como madureiros reais, colhe dos mais belos frutos e exala sabedoria e conhecimento.

Ela é escritora, diretora, produtora, cineasta e até política. A trans se candidatou pela primeira vez à vereadora nas eleições municipais deste ano e garantiu 160 votos. Ela tem o poder de transformar tudo que toca em arte e não se deixa levar pela falta de apoio da Prefeitura. Mayka batalha diariamente pela cultura, sendo uma figura cativa na área, que é desvalorizada pelos próprios moradores. Ela não tem medo de “bater de frente” e fala que isso sim, é trabalho de vereador.

Apesar de nunca ter ocupado um cargo eletivo, atua no cenário político e cultural de Castro. Ela já elaborou o projeto de lei (PL) 3176/2015, que prevê a denominação e preservação do bosque Romeu Rolim Carneiro, nome do avô de Mayka – a PL foi aceita pelo prefeito Reinaldo Cardoso; formou o Gapa (Grupo de apoio à prevenção da AIDS), que ajudou, em média, mais de 60 soropositivos a cada seis meses – o Gapa atuou de 2001 a 2003; e, por fim, publicou cinco livros, 12 filmes, uma minissérie e mais de 50 peças de teatro nos mais de 35 anos trabalhando com cultura.

Mayka transacionou há apenas 10 aninhos. Ao se descobrir, ela descreve a sensação de não caber nas caixinhas criadas pela comunidade LGBTQIAPN+ da época (2014). Após muito pensar, ela se entendeu como  seu verdadeiro eu. Depois de um ano, realizou uma conquista e um marco na história de Castro: foi a primeira mulher transgênero a ter os documentos retificados. Angela Almeida Lopes foi a primeira mulher trans a mudar o nome do registro civil sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual do Brasil. A vitória, como descreve Angela para a G1, completa 19 anos em 2024.

Nos primeiros dia de Mayka, a produtora ficou receosa em sair de casa. Mas, em pouco tempo, abriu-se para a cidade. Porém, ainda sente o preconceito por parte dos castrenses, principalmente no mercado de trabalho. Mayka conta que já enviou seu currículo para inúmeros mercados e estabelecimentos da cidade. A resposta é sempre a mesma. “Você não se encaixa no perfil da empresa”. Atualmente, sobrevive do aluguel de uma kitnet ao lado de sua residência, que fica em frente ao terminal de ônibus, na Rua Javert Madureira. Os anúncios no seu canal do YouTube, Língua Solta, também são uma forma de ganhar uma renda extra.

Uma das principais mudanças para a trans foi a relação com a mãe, Nerci Carneiro Rodrigues. Para ela, se sentiu amada pela mãe só depois que nasceu. Ela conta que brigas e desentendimentos eram constantes da relação, porém, depois de nascer, ganhou uma amiga. Ela contou com emoção no olhar. Pude captar o amor e carinho que ela sente pela figura materna, agora, sua melhor amiga.

Como sua tia e vizinha, Cleiri Rodrigues, diz, Mayka é uma “enciclopédia humana”. Durante a conversa, me senti em uma aula de história e geografia. Por exemplo, ela me contou sobre a história do Bento Mossurunga, que foi um importante músico e compositor castrense. Que, por sinal, dá nome ao único teatro  da cidade. Uma pena que o estabelecimento esteja abandonado há aproximadamente cinco anos. A diretora luta muito pela revitalização do local. As reformas tem previsão para começar ainda este ano.

Mas nem só de flores e rosas vive a madura. Logo que se assumiu, Mayka começou a trabalhar na rua como profissional do sexo. Ela conta com muito orgulho, e um pouco de saudades, sobre a experiência na profissão. Antes de começar seu expediente, tomava uma dose de conhaque em um bar próximo da esquina em que ficava. Enquanto profissional, já atendeu de tudo durante os nove anos de atuação. Desde empresários até motorista de carro funerário, acredite se quiser. “Depois da meia noite, todos os gatos são pardos”, exemplifica.

A importância de alguém como Mayka para Castro é um exemplo de resistência e força, visto que o Brasil é um dos países que mais mata pessoas LGBTQIAPN+ no mundo. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, foi o país que mais assassinou pessoas trans pelo 15º ano consecutivo. A política, e sim, mesmo sem cargo, ela é política, batalha pela população e pela cidade em que cresceu. Ela deixa o preconceito que sofre por causas maiores. O incômodo com o que está errado é parte dela, que ninguém nunca será capaz de tirar. Sendo assim, admiro a Mayka, mesmo ela fumando um cigarrinho de vez em quando.

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