Dados do Anuário de Segurança Pública demonstram tendência crescente no abandono afetivo e material
De acordo com dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), 8 crianças são abandonadas por dia no Brasil. No Paraná, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Brasileira, a cada 200 mil crianças (entendidas pelo documento como crianças e adolescentes, de 0 a 17 anos), cerca de 24 delas foram abandonadas pelos pais.
A taxa de abandono parental no Paraná, que considera um caso a cada 100 mil indivíduos, apresenta uma crescente desde 2020. Atualmente, os números aumentaram em todas as faixas etárias, principalmente dos 5 aos 9, dos 10 aos 13, e dos e 14 a 17, com um aumento de 24,1%, 20,4% e 34,3%, respectivamente.
Irene Nunes da Silva, funcionária pública de 52 anos, foi abandonada pelo seu pai, quando tinha 16 anos. De acordo com a ela, seu pai traiu sua mãe e possuía vício em jogos de azar, o que resultou num divórcio conturbado. “Foi bem triste. Inclusive, no auge da história, eu ajudei e encorajei a mãe a colocar ele pra fora de casa”, relata.
O distanciamento, em suas circunstâncias acentuadas, fez com que a relação de Irene com seu pai fosse profundamente ferida. “Como eu ajudei a mãe a colocar o pai pra fora de casa, ele saiu rogando praga na gente, que nós nunca íamos ser ninguém na vida, sabe?”, conta a mulher. Como a mais velha de duas irmãs, a mulher foi mais presente na discussão que acarretou no divórcio e, após isso, seu pai cortou a comunicação por anos. Além do abandono afetivo, o pai de Irene não pagava pensão, o que configura abandono material.
Para as mães das crianças abandonadas, a situação é ainda mais grave, como afirma Kathleen Van de Riet, psicóloga familiar e professora do curso de Psicologia na Cescage. Enquanto a visão de que ela é a mãe de uma criança que foi abandonada é majoritária, é necessário ressaltar que anteriormente a isso, aquela mulher é alguém que foi abandonada pelo seu cônjuge. “A palavra cônjuge vem de conjunto, é aquela pessoa com quem decidimos construir a vida em conjunto”, diz Kathleen, “Então, para a mulher, não é só sobre um processo de parentalidade, tipo, meu companheiro parental, mas é sobre o companheiro relacional também.”
Tudo isso pode culminar na solidão parental da mãe, que foi abandonada enquanto mãe e como parceira de vida. Dessa maneira, as mulheres podem se ver numa situação de sobrecarga, seja emocional, física, psicológica ou de trabalho.
O abandono de incapaz, de acordo com o artigo n° 133 do Código Penal, se configura como crime com punição de seis meses a três anos de reclusão, com agravantes que podem aumentar a pena. Se caracteriza como crime o ato de isentar-se dos cuidados de alguém que, de outra forma, seria incapaz de defender-se dos riscos do abandono.
Para os filhos, as consequências são duradouras e podem impactar sua vida em diversas áreas. “A gente tem o processo de insegurança em relação a relacionamentos, em relação à questão financeira. Então, às vezes, são pessoas muito inseguras. São pessoas, às vezes, muito intensas e muito… Que, às vezes, são muito impulsivas.” afirma a profissional de psicologia. Ainda, a psicóloga diz que essas crianças abandonadas possuem a tendência de procurar apoio em lugares onde possam sentir a sensação de segurança (mesmo que não verdadeira), como relacionamentos abusivos e dependência química.
O abandono material, criminalizado pelo artigo n° 244 do Código Penal, se caracteriza quando alguém, que possui obrigação de auxiliar financeiramente (seja seu cônjuge, filhos com menos de 18 anos ou pais idosos) deixa de cumprir com tal responsabilidade. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a média geral que contabiliza todas as faixas etárias (crianças e adolescentes de 0 a 17 anos), no Paraná teve uma baixa. No entanto, ao analisar de maneira específica, a taxa de abandono, contabilizando um caso a cada 100 mil, aumentou nas faixas de 5 a 9, e 10 a 13 anos.
O abandono afeta negativamente a vida de quem é vítima. Para Irene, toda a experiência fez com que desenvolvesse traumas que ela levou consigo para sua vida adulta, além de todo o sofrimento emocional no momento do abandono propriamente dito. “Naquela época, eu lembro que eu chorava muito, além de triste eu me senti decepcionada, porque você imagina uma pessoa e de repente descobre que ela é outra”, conta ela. O trauma em sua vida emocional fez com que criasse receio de repetir o ciclo em seus relacionamentos, o que gera um descontentamento e desgaste em relações interpessoais.
Infelizmente, Irene se viu em uma situação parecida com a de sua mãe. Seu então parceiro a traiu, ocasionando outro término doloroso em sua vida. A mulher, agora mãe, reconhece que situações como essa afetam suas crianças, “O que eu acho é que dói muito você não ter um pai presente em vários momentos. Sinto isso hoje na vida dos meus filhos, porque eles não têm o pai presente e eu passei por isso”.
Kathleen explica o fenômeno que pode justificar a existência de ciclos de relacionamentos abusivos e abandonos. “A gente chama isso inclusive de transgeracionalidade, é o entendimento de que costumes e valores e comportamentos, inclusive estruturas e familiares, elas vão passadas geração e geração. Então, a gente aprende com os nossos pais o que é ser família. Eles aprenderam isso com os pais deles, que aprenderam os pais deles, que aprenderam com os pais deles.” A profissional ainda explica que, em vista de romper o ciclo do trauma geracional, é necessário apoio psicológico e comunicação intrafamiliar.
Ao ser questionada sobre como funciona a psique do homem que abandona seu filho, Kathleen diz que existe um processo de quebra, e quase um luto para ele. “Existe um papel que vai ser quebrado assim que ele pisar fora de casa, sair da vida familiar, vai existir uma quebra relacional muito grande”. Mesmo assim, a psicóloga afirma que essa não é uma regra que se aplica a todos os pais, mas que é válido pensar caso a caso, e que dificilmente o abandono é uma decisão impulsiva.
“Você só se torna pai se você tiver filhos. É a única forma de você conseguir esse papel. É quando alguém olha para você e fala ‘você é o meu pai’.” Ao optar por abandonar o filho, o homem também abandona parte de sua identidade, o único fator que faz dele um pai, e a psicóloga assegura que é um processo complicado, possivelmente doloroso também.
Irene afirma que, apesar de todas as adversidades, aprendeu a lidar com a perda e, após saber de toda a situação e erros de seu pai, se tornou mais fácil viver sem ele em sua vida. “Então, independente de tudo o que aconteceu, tanto com o meu pai como com o meu marido, eu não parei de acreditar que a gente pode sim achar uma pessoa que seja leal, que seja parceira, que possa conviver com a gente. Então a única coisa que eu deixaria de mensagem é: não desista”, conclui.
Texto por Ester Roloff e Victor Schinato
Infográficos por Victor Schinato