O espetáculo fez parte da programação do 52º Festival Nacional de Teatro
A peça também aborda questões de desigualdade, transfobia, violência e descaso com os povos indígenas. Foto: Pietra Gasparini
A peça Desassossego, apresentada pelo Grupo Jurubebas de Teatro no Festival Nacional de Teatro (Fenata), retrata a rotina de três jovens confinados em um apartamento no período pandêmico de 2021, em Manaus, quando milhares de pessoas sofreram com a falta de cilindros de oxigênio nos hospitais. A trama coloca como uma das histórias centrais a de Maria, que representa tantas mulheres contaminadas pela Covid-19, que pelo descaso governamental ficaram sem oxigênio. Ao longo da história surge a pergunta: “Quem tirou o ar de Maria?”.
O grupo prioriza a atuação sensorial, começando com os atores no fundo do palco, dando ao público uma ideia de distanciamento, e durante as chamadas de vídeo na pandemia. Ao longo da encenação são utilizados outros elementos da virtualidade, como a luz de uma ring light.
Em roda de conversa após o espetáculo, o diretor, Felipe Maya Jatobá, conta como surgiu a ideia de elaborar a peça. “Minha mãe ficou internada por muitos meses por conta da Covid, quando começou a faltar oxigênio na cidade eu me vi desesperado para comprar. Eu vi minha mãe quase morrendo e é um sentimento de impotência gigante, eu não podia fazer nada porque o poder público deveria estar salvando a minha mãe e milhares de outras pessoas”, observa. O diretor explica que decidiu fazer essa denúncia não para falar só da sua mãe, mas de tantas pessoas que morreram, e se sente grato por poder transformar a sua dor e a dor de tantas outras pessoas em arte para que aquele momento não seja esquecido.
A atriz Nicka perdeu sua avó durante a pandemia e conta a dificuldade de retratar esse período em cena. “No início era muito difícil, lembrar da minha vó, lembrar desses lugares, era um lugar muito sentimental, mas a partir do momento que eu coloquei na minha cabeça que eu tinha a responsabilidade de contar a história dessas pessoas eu consegui lidar melhor”. A peça atravessa também outras questões que existiam no contexto epidêmico e fora dele, como a violência e descaso com os povos indígenas, a dificuldade de deslocamento, a desigualdade e a transfobia.
Nicka é uma atriz transexual e explica que durante a pandemia os efeitos da transfobia se intensificaram. “A maioria dos suicídios da pandemia eram de mulheres trans, e era sempre um viés igual, nós éramos expulsas de casa, e isso é algo que acontece anualmente, antes da covid, pós covid, só que na pandemia não tinha como ficar na rua, pessoas trans que se prostituem podiam ser contaminadas na rua, onde essas pessoas ficam?”, questiona.
A atriz ressalta a importância de mostrar que esses corpos existem e que é incrível para ela, como uma mulher trans de Manaus, representar esses corpos políticos em outras regiões do País. “A peça coloca essa personagem de forma afetiva, faz com que a gente possa ser vista de uma maneira humanizada. Eu me proponho a falar porque mulheres trans na pandemia, as que morreram, as que foram expulsas, as que não puderam respirar, não tiveram oportunidade de falar, então eu carrego esse lugar pra mim, esse lugar político, eu estou falando por essas pessoas e também estou falando por mim”.
O descaso e o genocidio que aconteceu durante a pandemia, e continua acontecendo com os povos indígenas, foi retratado na peça para não ser esquecido. O ator Leandro Paz, da comunidade indígena Kokama, desenvolveu cenas na língua originária Kokama prezando pela valorização da sua cultura. “Não é o meu papel traduzir o que está sendo falado, visto que é a língua que sempre esteve no nosso país. A população tem diversas formas de estudar e aprender a falar as línguas originárias. Mesmo não entendendo a tradução daquilo que falo em determinadas cenas, o público entende e sente empatia pelo sentimento que estou expressando”, conclui Leandro.
Marcia Regina Vansoski assistiu ao espetáculo e relata como foi relembrar o período pandêmico. “A encenação nos trouxe de volta aquele sofrimento das pessoas por terem que se isolar. Gostei muito da peça, achei que a forma como eles abordaram e representaram relembrou a angústia que vivemos na pandemia”, conclui.
O espetáculo com classificação indicativa para maiores de 16 anos fez parte da programação do 52° Festival Nacional de Teatro (Fenata). A encenação, ocorrida no dia 11, teve duração de 50 minutos e debate com os artistas ao final.
Por Amanda Grzebielucka e Pietra Gasparini
Foto: Pietra Gasparini
Foto: Pietra Gasparini
Foto: Pietra Gasparini
Foto: Amanda Grzebielucka