A literatura de fantasia tem um papel fundamental na abordagem de questões sociais, funcionando como um espelho da realidade por meio de cenários e personagens fictícios. ‘This Ravenous Fate’, escrito por Hayley Dennings, vai além de uma história sobrenatural ao usar vampiros e caçadores como metáforas poderosas para discutir racismo, marginalização e direitos humanos. Situada no Harlem de 1926, a obra mergulha em um contexto histórico vibrante e repleto de tensões sociais, enquanto explora dilemas profundos por meio das trajetórias de suas protagonistas.
Autora Hayley Dennings segura cópias de seu livro. Foto: Reprodução
Em uma entrevista exclusiva, Dennings revelou como o racismo e a exclusão social foram as principais inspirações para a criação de sua obra. A transformação de Layla Quinn, uma das protagonistas, em Reaper — uma criatura que carrega semelhanças com vampiros — se torna a base de um conflito profundo com sua amiga de infância, Elise Saint, agora uma caçadora dedicada a proteger a cidade desses seres sobrenaturais. A trama explora não apenas as questões de poder e vulnerabilidade, mas também a criminalização de minorias, refletindo uma dura realidade que ainda persiste.
Fantasia como crítica social: Reapers como metáfora da marginalização
Em ‘This Ravenous Fate’, a autora constrói uma metáfora afiada com os Reapers, criaturas vistas como monstros pela sociedade dominante, mas que, na verdade, são vítimas de um sistema opressor. Em uma entrevista franca, Dennings explicou como se perguntou: “E se o racismo fosse visível como uma doença física?” Dessa inquietação surgiu a figura dos Reapers — seres marginalizados, perseguidos e considerados perigosos simplesmente por existirem. O livro estabelece um paralelo contundente com a criminalização de minorias na vida real, particularmente com o tratamento dado à população negra e pobre nos Estados Unidos e no Brasil.
Assim como os Reapers são caçados e temidos em Harlem, o cenário do livro reflete um período de tensões raciais e segregação. A ambientação na Era do Jazz e da Proibição adiciona uma camada histórica ao debate sobre exclusão e marginalização. Durante os anos 1920, Harlem florescia como o centro da cultura negra americana, mas também era marcado pela segregação e pelo racismo institucionalizado. Dennings explora esse contexto com maestria, mostrando como as questões raciais da época influenciam diretamente os acontecimentos da trama.
No Brasil, a criminalização de minorias também encontra ecos no livro de Dennings. O tratamento violento dado às favelas e à população negra, muitas vezes vista como culpada por crimes que não cometeu, tem paralelos diretos com a perseguição aos Reapers. A marginalização sistêmica discutida em ‘This Ravenous Fate’ é uma realidade compartilhada por muitos brasileiros, especialmente em comunidades periféricas.
Complexidade de personagens: Interseccionalidade e identidade
Um dos aspectos mais fortes da narrativa de Dennings é o desenvolvimento das personagens principais. Elise Saint e Layla Quinn não são meras arquétipos de heroína e vilã. Ao invés disso, Dennings constrói personagens com camadas profundas, que enfrentam dilemas morais e emocionais complexos. Elise, pertencente a uma família renomada por caçar Reapers, lida com uma lealdade dividida e o peso de ser a protetora de uma cidade mergulhada em violência. Layla, por outro lado, personifica a figura da excluída, mas sua condição de Reaper não a define como uma vilã unidimensional. Ela mantém sua humanidade, e sua transformação se torna uma metáfora para o trauma e a exclusão social.
Dennings também aborda de forma habilidosa a interseccionalidade. A personagem de Layla é uma jovem negra e queer, enfrentando múltiplas formas de opressão. Essa construção ecoa as lutas de muitas mulheres negras e LGBTQIAP+ na vida real, que se veem marginalizadas não apenas por sua raça, mas também por sua identidade de gênero e orientação sexual. No Brasil, essa realidade é particularmente evidente no trabalho de ativistas como Djamila Ribeiro, que discute a importância de entender a intersecção de diferentes formas de opressão para construir uma sociedade mais justa.
A relação entre Elise e Layla, além de ser o centro do conflito sobrenatural, também explora uma dinâmica romântica. O trope de “inimigas a amantes” é habilmente utilizado, dando à narrativa uma tensão emocional e afetiva que transcende o simples embate entre caçadora e criatura. Esse romance, em um contexto de desconfiança e ressentimento, contribui para o crescimento das personagens e oferece um contraponto ao horror e à ação da trama.
Racismo, empatia e justiça social: Temas contemporâneos no Harlem dos anos 1920
‘This Ravenous Fate’ faz uma crítica direta às estruturas de poder que perpetuam a marginalização. A perseguição aos Reapers não se limita à luta física, mas representa também a desumanização sofrida por minorias ao longo da história. Ao ambientar a história em Harlem durante a Era do Jazz, a escritora coloca em primeiro plano as questões sociais daquele período, como a segregação racial e a criminalização dos negros, ampliando a discussão para o cenário contemporâneo.
Um ponto fundamental da narrativa é a relação entre empatia e justiça. Em sua entrevista, ela refletiu sobre como, tanto no mundo real quanto no universo de ‘This Ravenous Fate’, a falta de empatia contribui para a perpetuação da opressão. “Se você começa a ver alguém como humano, você não vai querer oprimi-lo”, afirmou. A caçada aos Reapers é um reflexo da falta de empatia por parte de uma sociedade que, ao desumanizar certos grupos, legitima sua própria violência.
No Brasil, a violência policial contra comunidades periféricas e negras é um lembrete constante da desumanização institucionalizada. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no país, muitas vezes em ações policiais desproporcionais. A brutalidade nas operações nas favelas, como a que ocorreu no Jacarezinho, no Rio de Janeiro, em maio de 2021, resultando na morte de 28 pessoas, é um exemplo trágico da criminalização sistêmica que ‘This Ravenous Fate’ espelha de maneira simbólica em sua narrativa, ao explorar temas de opressão e marginalização.
O poder da fantasia como crítica social
Ao discutir o impacto da fantasia na abordagem de temas como direitos humanos e racismo, a escritora comparou o gênero a um “bolo com vegetais escondidos”, sugerindo que a fantasia pode entreter enquanto carrega mensagens importantes sobre a realidade. ‘This Ravenous Fate’ exemplifica essa ideia, equilibrando elementos sobrenaturais com uma crítica social afiada. A narrativa envolve o leitor ao mesmo tempo em que o desafia a refletir sobre questões como marginalização e empatia.
A trama, que se desenrola em torno de uma série de assassinatos e da transformação dos Reapers em semi-humanos, é repleta de tensão e mistério. Apesar de alguns leitores apontarem que a segunda metade do livro desacelera um pouco, focando mais no desenvolvimento das personagens do que na resolução do enredo, a profundidade emocional e a complexidade das questões abordadas mantêm a leitura envolvente.
Uma obra para refletir e se apaixonar
‘This Ravenous Fate’ é mais do que uma narrativa de fantasia sobrenatural. É uma obra que utiliza o imaginário fantástico para fazer uma crítica contundente à marginalização e ao racismo. Ao construir personagens como Elise e Layla, Dennings desafia as noções tradicionais de heroísmo e vilania, criando um espaço para discussões sobre empatia, identidade e justiça social.
A ambientação rica em detalhes históricos e a trama repleta de tensão emocional garantem que a obra se destaque tanto para os fãs de fantasia quanto para aqueles que buscam uma leitura mais profunda e socialmente engajada. A criadora entrega uma história que, embora cheia de monstros e batalhas sobrenaturais, nos lembra que os verdadeiros horrores muitas vezes estão ancorados nas estruturas de poder e opressão que moldam nosso mundo.
‘This Ravenous Fate’ é, sem dúvida, uma estreia promissora, e deixa os leitores ansiosos para ver como a autora continuará a desenvolver essa história complexa no próximo e último volume da duologia.
Por Maria Gallinea