Diferentes experiências mostram a importância da figura paterna na vida de pessoas com deficiência
Com o mês dos pais, se torna inevitável refletir sobre o papel dessa figura na formação de um indivíduo. De acordo com dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), o Brasil registra mais de 91 mil crianças sem o nome do pai em cartório. Para além da presença paterna, fundamental no desenvolvimento de uma criança, uma parte dessa população necessita de um apoio a mais, como no tratamento de uma deficiência.
Nesta reportagem serão contadas duas histórias complementares e opostas: a de Kletson, pai solo de Greta*, uma garota de cinco anos no espectro autista; e de Nic**, uma mulher com deficiência visual que cresceu sem a presença de seu pai. Através do contraste dessas histórias, será ressaltada a importância da figura paterna e retratada a vivência de quem não teve o mesmo privilégio.
“Meu foco hoje é criar minha menina”
Pai solo de uma menina de cinco anos com grau 2 de autismo, Kletson Filip conta que descobriu o diagnóstico da filha quando ela tinha um ano e meio de vida e, naquela mesma época, sua esposa faleceu. Filip narra que no começo da vida de pai tentava ajustar seus horários de trabalho com a rotina de sua filha, algo indicado para o tratamento de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). “Eu falo que ela tem um relógio escondido”, diz ao comentar sobre a necessidade de rotina para Greta. “Se eu passo poucos minutos do horário de buscar ela na escola, já começa a perguntar para as professoras ‘cadê o papai?’”. Ele explica que entrava mais tarde e saia no horário combinado com a escola para buscá-la, para que assim não comprometesse a rotina da filha.
Com o passar dos anos e uma necessidade maior de cuidar da filha, o pai travou diversos argumentos com a empresa para mudar seus horários de trabalho para ter mais tempo de cuidado com ela. “Falei que poderia trabalhar menos e receber menos”, comentou ele, complementando que tentou uma redução da jornada, “mas a empresa, nessa parte, não foi flexível”. Assim, entrou em acordo com a empresa, onde trabalhava no setor de qualidade dos produtos de usinagem, para que não ficasse desamparado financeiramente.
Kletson, como pai solo, já passou por situações em que se sentiu discriminado pela sua situação familiar. Após o desligamento de seu antigo trabalho, um determinado vizinho sugeriu que ele se casasse novamente, pois, supostamente, as tarefas domésticas não deveriam ser de um homem. O pai fala ainda que brinca com comentários do tipo, especialmente quando questionam sobre a capacidade de criar sua filha sozinho. “Meu foco hoje é criar minha menina”, diz, ao mencionar tudo que precisou reajustar em sua vida para atender às necessidades de Greta, tanto como criança em fase de crescimento, como de pessoa no espectro autista.
Kletson relembra que, antes da morte da esposa, ela o preparou para cuidar sozinho de Greta, ensinando-o como ajudar uma criança em suas necessidades básicas, como dar banho e fazer a mamadeira. “Não sei se pode falar que foi um pressentimento do que estava para vir, mas ela sempre estava me treinando para isso”.
Nostalgicamente, Kletson relembra sobre os planejamentos que teve com sua esposa para que num futuro pudessem criar uma família. “A gente sempre planejou que teríamos filhos depois que construíssemos nossa casa, casássemos, fizéssemos tudo certo, não na loucura”. No final, ele revela que em casos em que se vê perdido na criação de Greta, ele pensa: “O que minha esposa faria?”.
A dedicação é quase uma devoção. “Eu tento o máximo que posso me moldar para ela”. O pai narra que seu tempo é praticamente todo voltado a cuidar de sua filha, seus momentos distantes dela são somente aqueles em que Greta está estudando. “O que eu tenho hoje é minha menina; ela é meu alicerce”.
“A relação com meu pai só me prejudicaria”
Nic descobriu sua deficiência a partir de exames ainda recém nascida. Seu pai não participou do processo de diagnóstico. A princípio, pensava-se tratar apenas de uma catarata que não progrediria facilmente. Por decisão da família, sob influência da avó, foi concluído que não fariam a menina passar por nenhum procedimento e ela obteria a cura a partir da fé: “foi decidido que Deus ia me curar, e é isso”, conta a mulher com um sorriso conformado.
“Eu decidi correr atrás, aos dez anos”, discorre a mulher sobre sua vida. “Eu não me sentia bem, sofria muito bullying e coisas do tipo”. A mãe buscou auxílio médico após a equipe pedagógica da escola alertar sobre a deficiência, “mas, em nenhum momento meu pai participou”.
Infelizmente, aos 10 anos, o tratamento já não seria efetivo e, além de submeter uma criança a uma cirurgia sem chances de sucesso, o risco da condição afetar o olho restante era uma ameaça real, e o tratamento foi deixado de lado. “Minha mãe ainda se sente culpada por ter deixado isso acontecer”, relata, “foi uma decisão delas de não seguir com o tratamento (enquanto ainda era possível)”.
Houve um momento de paz e relativa aproximação, aos 14 anos, quando o pai de Nic ofertou pagar uma lente colorida para ela, visto que sua deficiência afetava sua autoestima. “Meu pai sempre teve uma vida financeira bem melhor que a da minha mãe, e eu pedi ajuda a ele porque eu queria esconder”. No entanto, ela não se adaptou ao uso da lente e decidiu não utilizá-la.
“Eu tinha colocado na minha cabeça que eu ia conseguir fazer uma cirurgia, arrancar todo meu olho e colocar outro”, relata a estudante. “Eu estava tentando ver a burocracia para me inscrever num site de doação, mas o médico me explicou que seria impossível”. Nic afirma que após constatar que suas opções estavam esgotadas, recorreu ao tratamento psicológico para se aceitar como ela é.
Atualmente, Nic estuda na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e sua visão foi permanentemente comprometida por conta da decisão de sua família de afastar a criança do tratamento. Ao ser convidada para dar a entrevista sobre sua vivência com seu pai, disse que não haveria muito a falar, visto que aquele homem não foi muito presente em sua vida. “Quase nada, pra falar a verdade”, complementa a mulher ao final da frase, entre um riso descontraído.
Ao tentar resumir sua relação com seu pai em poucas palavras, a resposta foi “ela é complexa, e cheia de turbulências”. Ele não estava presente na criação de sua filha: “meu padrasto foi mais próximo que ele”, diz. Ainda assim, Nic fala que sempre tentou manter o contato, por mais que os laços não fossem tão fortes.
“Eu não teria tantos problemas psicológicos, não tentaria me agarrar em outras pessoas para conseguir suprir a falta que ele me fez”, responde ao se indagar sobre como seria sua vida caso seu pai tivesse estado presente na infância. “Se ele tivesse ficado perto de mim, eu tenho certeza de que seria mais independente”.
“Não falo com ele há anos”, relata a estudante sobre seu pai. Ao ser perguntada sobre o motivo do afastamento, ela fala sobre o acúmulo de brigas que resultou na ruptura. “A gente brigava muito, eu e ele falamos muitas coisas pesadas”. Nic diz que foi até seu pai inúmeras vezes para pedir perdão, mas não obteve sucesso.
Durante a entrevista nos corredores da universidade, Nic interrompeu sua fala sempre que outras pessoas se aproximavam, e pediu para que fosse utilizado um nome fantasia. O assunto é marca de uma criação com diversas faltas, e a ausência paterna é uma delas. No entanto, é notória a resiliência da garota e a leveza com que ela respondeu a entrevista, salpicando com risos e piadas sempre que pôde. Além disso, ela possui consciência da responsabilidade do pai em sua educação. “Uma relação péssima com meu pai não iria me ajudar, só me prejudicaria”.
Paralelas, mas diferentes
As histórias acima retratam uma realidade muito frequente. A ausência do pai de Nic é um fator fundamental para a construção de sua vida como ela é hoje, e apesar dos traumas gerados por essa falta, a mulher se mostra pronta para traçar seus objetivos e seguir a vida, com sua mãe e padrasto como apoio. Enquanto isso, Greta terá um pai que dedica a vida para garantir que suas necessidades específicas sejam atendidas.
*Pseudônimo criado para preservar a identidade da criança a pedido do pai
**Nome fantasia escolhido pela fonte para manter sua identidade em segredo
Texto por Gabriel Aparecido e Victor Schinato