Coluna | Entre liberdade de expressão e homofobia: existem limites!

Recentemente, o jogador de vôlei Maurício Souza fez algumas postagens em relação à bissexualidade de um personagem de histórias em quadrinhos. A postagem gerou uma movimentação nas redes sociais, na qual diversas pessoas, por um lado, pediam uma retratação e um pedido de desculpas por parte do jogador, ao afirmar que sua fala ultrapassava os limites da liberdade de expressão e se encaixava em um crime propriamente dito. Por outro lado, vozes conservadoras afirmavam que se trata do exercício da liberdade de opinião que deveria ser respeitada.

Como resultado, o jogador foi demitido do Minas Clube – time no qual jogava profissionalmente – que afirmou não compactuar com as falas do jogador e defender a inclusão, a diversidade e demais causas sociais.

Diante deste imbróglio, surge o embate jurídico-social que permeia as discussões atuais: tais falas são manifestação da liberdade de expressão ou crime de homofobia? 

De imediato, é importante deixar evidenciada nossa leitura sobre este caso, e afirmamos categoricamente que estamos diante de uma hipótese de LGBTfobia. Não se trata de uma mera suposição, mas de uma análise jurídica, política e social.

Isto, evidentemente, não significa que prezamos por uma liberdade de expressão mínima ou que somos contrários a ela. Significa, de maneira oposta, que defendemos a maior liberdade de expressão possível, haja vista que isto implica em mais democracia. Todavia, não se pode interpretar a liberdade de expressão ou opinião como licença para expor pensamentos que ferem o próprio direito de liberdade – no caso em tela, a liberdade de ser quem você é e da livre orientação sexual.

A liberdade é um direito conquistado em árdua luta durante anos, sendo assentada definitivamente como um direito no pós-revolução Francesa e com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. Desde então, é possível afirmar que tal direito passa por atualizações e reinterpretações, que permitem sua adequação à realidade atual e constantes mudanças na sociedade. Trata-se de um direito humano, protegido por diversos tratados internacionais e, na Constituição da República Federativa do Brasil, presente no art. 5º como um direito e garantia individual.

Ainda, importante mencionar que a liberdade de expressão é uma das variadas ramificações do direito de liberdade. Nela, todo indivíduo tem o direito/poder de se valer de seus pensamentos, sua formação pessoal, para expressar o posicionamento que entender pertinente de acordo com suas convicções. Neste sentido, José Afonso da Silva compreende que se trata da liberdade individual de adotar atitude intelectual que lhe aprouver, seja do pensamento íntimo, seja da tomada de posição política, dentre outros aspectos.

É mister ressaltar a contribuição do direito à liberdade de expressão como forma de garantir a democracia. Ao positivá-la, a Constituição Federal de 1988 assegura que os indivíduos possam se manifestar de forma livre, sem nenhum tipo de censura prévia. Todavia, é preciso ressaltar que o direito à liberdade não é licença/prerrogativa para disseminar preconceitos e, sobretudo, violar os demais direitos previstos na própria Constituição.

Em uma interpretação sistemática do texto constitucional, em especial na leitura do artigo 5º, incisos IV e V, o direito de liberdade de manifestação de pensamento é plenamente protegido, com a ressalva de que se veda o anonimato – ou seja, cabe ao indivíduo se identificar ao exteriorizar seu pensamento – e também sendo cabível o direito de resposta e consequente indenização.

Defende-se, em consonância com a Constituição e com a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que este direito não é absoluto, que encontra limites no conjunto de direitos da Carta Constitucional, uma vez estes devem ser interpretados concomitantemente. Assim já afirmava o Ministro Celso de Mello, em 2003, e sede de Habeas Corpus impetrado por Siegfried Ellwanger. Nas palavras do Ministro:

“O direito à livre expressão do pensamento (…) não se reveste de caráter absoluto, pois sofre limitações de natureza ética e de caráter jurídico. Os abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento, quando praticados, legitimarão, sempre “a posteriori”, a reação estatal, expondo aqueles que os praticarem a sanções jurídicas, de índole penal ou de caráter civil.”

Há que se ressaltar, ainda, que à luz do próprio sistema internacional de proteção de Direitos Humanos, o entendimento de restrição à liberdade de expressão segue o mesmo sentido. Ainda que a Convenção Americana de Direitos Humanos insira o direito à liberdade de expressão como um dos objetos de proteção do tratado, em seu artigo 13, a própria jurisprudência da Corte já se manifestou que a restrição à liberdade de expressão pode acontecer, desde que seja estritamente necessária e baseada na proporcionalidade. O exercício de direitos estabelecidos na Convenção, portanto, devem se harmonizar com o bem comum. Ainda, a posterior responsabilidade deve estar consonante com a necessidade de respeitar e garantir a reputação dos demais direitos, garantindo assim a seguridade nacional.

Não se deve olvidar, ainda, que a própria Corte brasileira já equiparou a homotransfobia ao crime de racismo, na ADO 26. Neste sentido, declarou que, enquanto o Legislativo não tipifica a homotransfobia, deve-se aplicar o crime previsto na Lei 7.716/89, que tem como fundamento o preconceito, manifestado em suas variadas formas. Trata-se de uma interpretação conforme a Constituição. 

É preciso deixar claro que a homotransfobia não se funda apenas em ataques diretos à pessoas, mas também em situações genéricas que perpetuam um preconceito que é estrutural em nossa sociedade. Diante destes fundamentos, parece claro que Maurício não emite uma “opinião” baseada na liberdade, mas sim comete um crime que reverbera em violências cotidianas. Logo, se esta opinião afronta a garantia de outros direitos humanos, a responsabilização e restrição do direito à liberdade parecem se fazer presente como limitadora da instabilidade democrática causada pelas opiniões em desarmonia com o texto constitucional e com os próprios tratados internacionais de Direitos Humanos.

A título informativo, somente em 2020, segundo o Grupo Gay da Bahia, foram registradas 237 mortes violentas contra a população LGBTQIA+, baseadas exclusivamente por sua orientação sexual/identidade de gênero. Tais dados são levantados pela Organização justamente porque não existe um mecanismo estatal que compute estas formas de brutalidade contra a população LGBTQIA+, o que pode suprimir ainda mais casos violentos.

Portanto, manifestações que partem de uma suposta liberdade de expressão, como o caso em tela, mas que são desarmônicas com o contexto jurídico de proteção de direitos fundamentais, não devem ser consideradas como expressão de liberdade, cabendo inclusive eventual responsabilidade. É preciso combater tais reproduções e, especialmente, garantir que a liberdade sexual não seja cerceada por questões morais/individuais. Chega de preconceito!

Esse texto também foi publicado no Portal Migalhas.

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