Marina Demartini
Surpresa não é a palavra que define a saída dos Estados Unidos do Conselho dos Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas (ONU). Tal decisão não é considerada inesperada apenas devido à política “América em 1º lugar” empregada por Trump, em que filhos são separados de seus pais, líderes autoritários são recebidos de braços abertos e acordos internacionais, como o de Paris sobre mudanças climáticas e o nuclear do Irã, são abandonados. Na realidade, na atual ordem (ou desordem) mundial, a falta de tolerância é de longe um espanto.
A relação dos EUA com o Conselho nunca foi estável, nem mesmo quando o órgão foi criado em 2006 para substituir a Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Inicialmente, o país se recusou a participar do Conselho, argumentando que, como a antiga comissão, o CDH havia admitido países com registros questionáveis de direitos humanos. Apenas em 2009, no governo de Barack Obama, que os EUA decidiram ser unirao Conselho. As críticas, no entanto, não pararam com a sua adesão.
Além dos Estados Unidos, outros países e grupos de direitos humanos expressaram reclamações sobre o corpo em 2013, depois que Arábia Saudita, Argélia, China, Rússia e Vietnã foram eleitos membros. Israel também critica o Conselho desde o seu surgimento, alegando vigilância injusta do órgão em relação às suas atividades militares em Gaza e nos Territórios Ocupados. O país, aliás, é o único sujeito a revisão permanente na agenda do CDH sob o “Item 7”, chamado de “Israel e os territórios palestinos ocupados” da agenda. Em apoio a Israel, Nikki Haley, representante dos EUA junto às Nações Unidas, disse no ano passado no Conselho que era “difícil aceitar” que resoluções contra Israel haviam sido aprovadas sendo que nenhuma foi considerada no caso da Venezuela.
Desse modo, a saída dos Estados Unidos do CDH não é surpreendente. Contudo, ela reforça uma discussão que é recorrente em meios acadêmicos e diplomáticos: afinal, o modelo proposto para o órgão é realmente eficaz? Antes de responder a essa pergunta, é importante entender como o Conselho funciona e quais são as suas principais atividades. O órgão é composto por 47 países de diferentes regiões do mundo que participaram de eleições para se tornarem líderes do Conselho por três anos. Cada candidato é obrigado a mostrar um bom registro de direitos humanos e os membros eleitos que cometerem transgressões podem ser expulsos – até hoje, apenas a Líbia foi convidada a se retirar do órgão. Entretanto, a politização entre países vizinhos ou que possuem relações amigáveis continua. Isso porque, nações considerada mais poderosas, como os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, simplesmente decidem quais países são adequados para proteger os direitos humanos.
Outro ponto importante é que o CDH faz reuniões três vezes ao ano que servem para analisar os registros de direitos humanos de todos os 193 membros da ONU. Essa análise é conhecida como Revisão Periódica Universal (RPU) e é um dos únicos mecanismos das Nações Unidas que examina todos os países independentemente de suas situações e posições política, econômica e social. No total, 42 países são analisados todo ano, assim as atividades de cada membro são revisadas uma vez a cada quatro anos e meio. A RPU é dividida em três etapas: na primeira e na segunda fases, relatórios são entreguem pelo próprio governo revisado, por especialistas da ONU e por ONGs para serem revisados pelo Conselho durante três horas e meia – é durante essa sessão que recomendações são feitas para os países analisados. Na terceira e última fase, a revisão é publicada com todas as recomendações aceitas pelo país analisado e quais serão os passos para implementa-las nos próximos quatro anos e meio. Após o fim desse prazo, o Conselho se reúne novamente para ver quantas recomendações foram incorporadas.
Como a maioria das instituições das Nações Unidas, o CDH também sofre de um problema comum em estados burocráticos: ritualismo. Todo esse processo meticulosamente desenvolvido e a linguagem dos direitos humanos são adotados por muitos países para desviar o escrutínio e a responsabilização, ao mesmo tempo em que ganham reputação e legitimidade positivas. Várias nações, por exemplo, ratificam resoluções, mas não as implementam. Isso acaba enfraquecendo a instituição, tornando o monitoramento um mero processo cerimonioso.
É importante ressaltar, contudo, que todo esse processo também causa efeitos positivos na sociedade. Primeiramente, há uma coordenação entre países de diferentes contextos econômico, político e social, algo que não é comum em outras instituições da ONU, como a Assembleia Geral e, especialmente, o Conselho de Segurança, com suas pautas determinadas apenas pelas grandes potências mundiais. Além disso, há uma inclusão maior da sociedade civil, como ONGs que defendem os direitos humanos e grupos de transformação social.
Outro efeito positivo da RPU é que ela revela como a regulação dos países vai muito além das regras legais propostas por tratados internacionais – também é importante salientar que a Revisão Periódica Universal é o único mecanismo obrigatório que revisa a conformidade dos países com relação aos direitos humanos – bem como abre mais a discussão sobre temas menos privilegiados, como os direitos econômicos, sociais e culturais. O órgão, por exemplo, tem sido fundamental na promoção dos direitos das pessoas com deficiência e da comunidade LGBTI. Também devido a esse constante debate, a agenda de direitos humanos é influenciada, além de provocar a mídia do país analisado, impulsionando as recomendações. Alguns exemplos disso são as investigações em Mianmar em 2017, na República Democrática do Congo e no Iémen. Além disso, a Comissão de Inquérito da Síria investiga o conflito desde o início devido ao trabalho feito pelo Conselho.
Com todos esses pontos em mente, é mais fácil entender a saída dos EUA do Conselho dos Direitos Humanos não apenas a partir da visão de política de exclusão atual do país, mas também pelo processo operacional do órgão e seus problemas de politização e ritualismo. No entanto, vale ressaltar que não é porque os Estados Unidos saíram do grupo que outros países irão seguir a sua liderança e declarar um boicote. A realidade é que o Conselho provavelmente será ainda mais severo com Israel e a desestabilização promete ser ainda maior. Tiro no pé? Talvez não. Mas com certeza um no dedão.