Moro e Dallagnol: parcialidade dentro da lei? Sobre convicções e provas.

Até meados de 2018, o hoje ministro, e então juiz federal, Sérgio Moro parecia ser uma quase unanimidade nacional, à exceção de uma parcela da população que o via com desconfiança. Camisetas estampadas com seu rosto, e bonecos infláveis do juiz vestido de super-herói eram comuns em passeatas contra a esquerda, o comunismo e tudo isso que estava (está?) aí. As suspeitas sobre Moro partiam, dentre outros fatos, da velocidade que o processo contra Lula atingia na 1ª instância; de meios não processuais legais no desenrolar da Lava-Jato, como as conduções coercitivas sem necessidade e o vazamento de escutas telefônicas; e da falta de provas cabais, mas excesso de convicção dos procuradores e do próprio juiz.

Sobre o último ponto, o mesmo se podia dizer dos desconfiados: tinham convicção de que a atuação de Moro e Dallagnol era política, mas faltavam-lhe provas. Do outro lado, argumentava-se que os processos da Lava-Jato haviam seguido o procedimento legal, sendo ratificados pelas instâncias superiores, de modo a estrear algo nunca visto na história deste país: cadeia para poderosos. Claro, os desconfiados ainda clamavam por “direitos humanos” e “garantismo penal”, apontando inconsistências jurídicas, e até a aceitação de Moro para ser ministro da justiça do governo Bolsonaro, numa politização de sua atividade, o que ele refutou, por alegar que seu cargo era apenas técnico, e não político.

E logo no primeiro semestre de atuação do único Ministro não-político de que se tem notícia – não apenas na história do Brasil, mas da modernidade –, surgiram conversas, divulgadas pelo site The Intercept, que parecem desmenti-lo. Segundo os diálogos, Moro teria conversado diretamente com o procurador Deltan Dallagnol, dando-lhe indicações sobre como proceder nas investigações, dentre outras várias informações.

Não é o intento deste pequeno texto discorrer sobre o conteúdo das conversas, e nem se elas, de fato, ocorreram, mas apenas responder: estas conversas podem ocorrer? Em uma palavra, NÃO. Em um processo penal, exige-se do magistrado a maior imparcialidade possível, pois ele deve ouvir os argumentos de ambos os lados – do réu, defendido por seu advogado; e do autor, que, no caso das ações da Lava-Jato, é o Estado, representado pelo Procurador – e, com base nestas exposições, decidir de que lado a Lei está. Ora, se em boa parte dos processos da Lava-Jato, o Procurador era Deltan Dallagnol, este não poderia conversar com o julgador do caso fora das audiências. 

Tal imparcialidade decorre da famosa separação dos poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público). Na realidade, os poderes não são, realmente, separados, pois atuam por meio de “freios e contrapesos”. Ou seja, é possível que as atuações dos poderes se entrelacem em certos momentos, como quando uma CPI do Legislativo investiga o Executivo, ou quando este veta um projeto de lei daquele. A Lava-Jato, aliás, nada mais é do que, em termos formais, o Judiciário julgando membros do Executivo, em face de investigação promovida pelo Ministério Público Federal. O problema é quando uma das partes tem privilégio a informações, repassadas justamente por quem irá julgar a adequação destas informações no presente caso. Pense bem: caso você fosse réu, acharia justo que o Juiz e o seu acusador conversassem sem o seu conhecimento? Você pode, claro, responder que nunca fez nada de ilegal, e nem será réu em um processo penal. Mas, ainda assim, a lei não é a mesma para todos? Vejamos o que dizem alguns dispositivos legais sobre isso:

 

Declaração Universal dos DH (1948). 

Art. 10º. Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

 

Código de Ética da Magistratura

Art. 7º A independência judicial implica que ao magistrado é vedado participar de atividade político-partidária.

Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.

 

Código de Processo Penal (Decreto Lei nº 3.689/1941).

Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes: […] IV – se tiver aconselhado qualquer das partes [lembrando que, no caso, o MP é parte];

 

Os artigos são bastante claros. E caso as conversas entre o Juiz Moro e o Procurador Dallagnol sejam mesmo ilegais, então a atuação do magistrado será suspeita, de acordo com o citado artigo 254 do Código de Processo Penal. E é exatamente isto que os defensores remanescentes da Lava-Jato não querem que ocorra, pois outro artigo do mesmo Código teria que ser acionado, qual seja: 

 

Código de Processo Penal (Decreto Lei nº 3.689/1941).

Art. 564. A nulidade [do processo] ocorrerá nos seguintes casos: I – por incompetência, suspeição ou suborno do juiz;

 

Em outras palavras, todos os processos da Lava-Jato julgados por Moro seriam anulados. Diante disso, resta aos brasileiros, tão sedentos por Justiça, questionar aos poderes republicanos: comprovando-se a veracidade das conversas, haverá convicção suficiente para se fazer respeitar a atuação dos Poderes dentro dos limites legais? Ou os fins justificam os meios, de modo que, como diz Walter Benjamin, “nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande, menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia”?

Por Pedro Miranda

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