Filme estrelado por Fernanda Montenegro retrata uma história real sobre a luta pelos direitos humanos no combate ao aliciamento de crianças para o tráfico, violência e corrupção policial em uma comunidade no Rio de Janeiro.
Por Milena Leal
Lutar pelos direitos humanos é lutar pelo pluralismo político, é lutar pelo direito de escolha e de existência. O filme ‘Vitória’ (2025), dirigido por Andrucha Waddington, retrata como a estagnação policial diante à violência e ao tráfico na Ladeira dos Tabajaras, zona sul do Rio, em Copacabana, motiva uma senhora de quase 80 anos a filmar, da janela de seu apartamento, a rotina e movimentação da comunidade, com o objetivo de denunciar o crime. A idosa, outrora solitária,começa as gravações em 2003 mas tem sua história contada por Fábio Gusmão somente em 2005, jornalista investigativo que na época trabalhava no jornal Extra. Fábio é também o autor do livro Dona Vitória Joana da Paz, que inspirou o filme.
O longa tem início com a atriz na praia, o olhar à deriva. Montenegro retrata a solitude de uma mulher idosa em uma sociedade etarista de maneira palpável, pelo mínimo ela dita o máximo e engaja a plateia, conduzindo uma ‘comédia de costumes’ em meio aos hábitos e à criminalidade no cenário carioca. O diretor consegue ilustrar perfeitamente uma Copacabana vivida, muito além das produções cinematográficas, com personagens únicos que dialogam diretamente com a narrativa e criam no público um vínculo afetivo, dando vida ao sentimento de identificação para com a obra.
A trama é vivida ao máximo pelos personagens e a obra os conduz belamente pelo caos no morro, tornando o espectador íntimo com a cena. Thawan Lucas, Linn da Quebrada e Alan Rocha têm papéis de destaque, cada um sobrepondo a noção de coadjuvante, desenvolvendo tamanha complexidade dentro da tela que é possível visualizar não o personagem, mas a persona. Cada um representa um eixo; uma temática que demandava ser debatida em 2005, e demanda debate hoje, em 2025.
QUEM É VITÓRIA?
As gravações feitas pela janela de dona Vitória denunciaram ações do Comando Vermelho, uma das maiores organizações criminosas do Brasil, e o envolvimento policial com o tráfico de armas e drogas. Este ativismo, essencial para a operação, colocou a idosa em uma posição perigosa, sendo necessária sua efetivação no sistema de proteção a testemunha, no qual precisou assumir uma nova identidade e mudar de estado, deixando a casa na qual viveu por 36 anos. Nascida Joana Zeferino Da Paz, alagoana, se tornou Vitória, responsável pela prisão de mais de 30 pessoas, incluindo 9 policiais.
A heroína por trás da câmera era uma mulher negra, de personalidade forte, que enfrentou a violência desde tenra idade e nunca cedeu diante do que a vida lhe impôs. Viveu por 17 anos com a identidade velada, sem nunca retornar ao Rio de Janeiro e sem ter o devido reconhecimento por seu feito. Joana não viveu para receber o crédito, visto que os aspectos do caso, incluindo sua identidade, só foram divulgados após a sua morte.
“IDADE CERTA”
Joana e Fernanda são resistência em uma sociedade misógina e etarista. Joana desestruturou o esquema do comando vermelho na Ladeira dos Tabajaras beirando os 80 anos. Fernanda interpreta essa história em ‘Vitória’, aos 93 anos (idade durante as filmagens).
Agora, aos 95, Fernanda acompanha a promoção do filme e muda mais uma vez a indústria cinematográfica, desconstruindo o ideal de que atriz tem prazo de validade. Sua lucidez e agilidade, sua capacidade de dialogar com a cena e o público e, principalmente, sua capacidade de emocionar com um olhar prova que ninguém é menos pela idade que tem.
A misoginia oprime mulheres, assim como o etarismo. Juntos atuam de forma interseccional discriminando as mulheres e as desvalorizando socialmente por serem do sexo feminino e de determinada faixa etária. Obras como ‘Vitória’ são fundamentais no papel de conscientização e de representatividade, afinal, a luta para desconstruir estigmas é árdua e demanda constância.
VIOLÊNCIA VELADA
Mesmo antes de chegar no morro, Joana já vivenciava a violência; quando criança, foi feita de empregada doméstica e abusada por um patrão, fato que acarretou em uma gravidez. A história contada por Vitória se destaca, não por ser única, mas por ter sido ouvida; entretanto, na taciturnidade do abuso, são incontáveis as vítimas presas em situações abusivas, muitas vezes incapazes de se desvincular dessas.
Os fatores que impedem com que uma vítima deixe uma situação de abuso podem variar; na violência contra a doméstica, o medo de ter sua história desacreditada, a vergonha do que sofreram, o medo de perder o emprego e o medo de reviver o trauma são alguns dos motivos que reforçam e não permitem a denúncia.
REPRESENTATIVIDADE TRANS
No filme, a personagem de Linn da Quebrada interpreta Bibiana, vizinha de dona Nina, que acaba se tornando uma grande amiga da protagonista. Linn dá vida a uma mulher trans vivendo na Ladeira dos Tabajaras no contexto de 2005, um ano após a definição do dia 29 de janeiro como o Dia da Visibilidade Trans.
Se ainda hoje, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Trans (Antra), o Brasil é, pelo 16º ano seguido, o país que mais mata pessoas trans e travestis, em 2005 pouco se noticiava a respeito das vítimas, gerando imensa subnotificação.
INFÂNCIA ROUBADA
O longa é rico em temáticas. O personagem de Thawan Lucas se destaca ao retratar o licenciamento de crianças para o tráfico. Marcinho é um menino que reside na Ladeira dos Tabajaras, ele ajuda dona Nina carregando as sacolas dela diariamente. É uma das únicas companhias da senhora, entretanto, a realidade do garoto acaba afetada pela violência do morro.
Marcinho faz uso de entorpecentes e, mais tarde, é detido pela polícia ao ser pego vendendo drogas. A rápida liberação pela justiça permite com que o menino retorne às mesmas condições, sem nenhum órgão atuando pela sua segurança. O personagem de Thawan é fictício, mas representa a história de diversas crianças aliciadas ao tráfico, as quais não recebem ajuda judicial e acabam estabelecidas nas condições de violência.