Coordenador de História do Museu do Holocausto de Curitiba fala sobre memórias do Nazismo e paralelos com a atualidade

O Brasil tem mais de 334 células neonazistas em atividade, segundo um levantamento da antropóloga Adriana Dias, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Desde o início do Governo do presidente Jair Bolsonaro em janeiro de 2019, várias personalidades ligadas ao mandato foram acusadas de promoverem gestos, mensagens e discursos ligados aos supremacistas brancos. A equipe de reportagem do Elos conversou com Michel Ehrlich, coordenador do departamento de História e mediador educativo no Museu do Holocausto de Curitiba, sobre o cenário politico social brasileiro em relação a atos supremacistas. Ehrlich é mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com a dissertação “Filhos da Shoah: Memórias e significações na comunidade judaica paranaense do pós-guerra”. Desenvolve pesquisas nas áreas de autoritarismo, memória, educação e identidades. É autor de “O Macabeu: imigração e identidade judaica”, publicado em 2017. A entrevista também trata sobre o trabalho realizado pelo Museu do Holocausto de Curitiba, primeiro e único no Brasil.

Em 24 de março, o Museu do Holocausto de Curitiba twittou que “é estarrecedor que não haja uma semana que o Museu do Holocausto de Curitiba não tenha que denunciar, reprovar ou repudiar um discurso antissemita, um símbolo nazista ou ato supremacista. No Brasil, em pleno 2021”. Como você avalia o cenário político social do Brasil atualmente em relação a atos supremacistas?

Esse tweet foi por ocasião do gesto feito pelo ex-assessor Filipe Martins. Não foi o único caso que o Museu se posicionou via Twitter recentemente, mas foi o que teve maior repercussão, provavelmente por ser o mais grave. É preciso diferenciar dois fenômenos que se relacionam mas são distintos. Um deles é a deturpação da memória do Holocausto, que é alegações como uma que também o Museu se posicionou no Twitter, comparando o Lockdown em Araraquara com um campo de concentração. Nesse caso, é uma deturpação da memória. Transforma o Holocasuto e o Nazismo como o símbolo máximo do mal e associado àquilo com o qual não se está concordando. E essas comparações têm sido recorrentes. O outro fenômeno, ainda mais grave, em que se enquadra o caso do Filipe Martins, se trata efetivamente de apologias ao Nazismo e a Supremacia Branca. No caso do ex-assessor, foi o gesto que nos últimos anos foi apropriado por grupos Supremacistas Brancos, como diversas notícias e estudos mostram. Diante disso, o Museu, como uma instituição que se volta para a construção de uma memória do Holocausto, se vê na obrigação de se posicionar perante a esses acontecimentos. Adoraríamos não gastar nosso tempo com esse tipo de coisa. A função do Museu não é ficar respondendo pessoas que fazem esse tipo de apologia. Nós gostaríamos de estar focados 100% em uma educação de Direitos Humanos, combate ao racismo e apoio à democracia. Mas infelizmente, diante dessas situações, o Museu se vê na obrigação ética de se poscionar e deixar claro não só o repúdio, mas quais são as relações desses gestos com o passado com o qual o Museu do Holocausto lida, quais os vinculos que se estabelecem, o que significa, qual a história desse gestoe porquê foi apropriado pelos supremacistas brancas.

E em qual contexto esses gestos, declarações e mensagens supremacistas estão inseridas?

Várias pesquisas em Ciências Políticas demonstram que se inserem em uma estratégia chamada dog whistle, ou em português, apito de cachorro. Que é quando um político ou personalidade famosa emite alguma mensagem, seja um gesto ou expressão, que para maior parte das pessoas não significa nada, mas que inflama e empodera grupos específicos que são os receptores dessas mensagens. No caso do ex-assessor Filipe Martins, sequer foi o primeiro gesto feito por ele. Já tivemos uma publicação dele de um trecho do poema que abria o manifesto do terrorista que abriu fogo contra uma mesquita na Nova Zelândia, Brenton Terrant. O poema é anterior ao ataque, mas colocando no contexto, as quantidades de coincidências mostra o que significa. Isso se enquadra no conceito do dog whistle, porque são situações em que facilmente é fácil alegar “mas veja bem, não é isso que quis dizer”. E os casos de Martins não são isolados no governo. A mais explícita delas, que até deixa de ser um dog whistle, porque quase todos perceberam, foi o caso do então Secretário Especial de Cultura, Roberto Alvim, em janeiro de 2020. Em um pronunciamento, ele copiou as palavras e a estética de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista. O próprio discurso dele foi compatível com tudo o que Goebbels afirmava. Esse tipo de fenômeno está mais recorrente na atualidade e é preciso deixar claro que é preocupante que qualquer pessoa faça um gesto desses, mas é ainda mais grave quando é alguém que tem um cargo no governo ou uma pessoa influente em redes sociais.

 

Espaço no Museu do Holocausto de Curitiba expõe propagandas do Governo Nazista, área chefiada por Joseph Goebbels. Foto: Cássio Murilo

Como vocês mesmo destacaram, nos últimos meses tivemos vários exemplos de atos supremacistas e xenófobos por parte de membros do governo e famosos. Por que você acha que isso acontece?

Eu acredito que vários fatores provocam esse fenômeno. Um deles é uma forma como a memória do Holocausto passou a ser representada como o Nazismo sendo o simbolo máximo do mal. Então, aquilo que não gosto eu passo a dizer que é nazista. O que não significa que paralelos e relações históricas não devam ser feitas, pelo contrário, não podemos tratar o Holocausto e Nazismo como algo completamente separado da humanidade. Não é um fenômeno histórico, mas um fenômeno humano. Um segundo fator relevante, como mostram estudos como o da antropóloga Adriana Dias da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é um aumento de sites e células neonazistas e de supremacistas brancos. Muitas delas surgem no ambiente ambiental e depois saem de lá. Elas permanecem marginais na sociedade como um todo, mas crescem em uma velocidade alarmante. Estamos em um ambiente político que tem se mostrado propício para esse tipo de ação, marcado por ataques àquilo que é entendido como diferente. Ainda existe um certo rechaço social a símbolos como a suástica, porém, quando um grupo neonazista ou supremacista branco emite uma mensagem que é completamente coerente com o ideal deles, mas sem esses símbolos que deixam explícito o vínculo com essas ideias racistas, xenófobas, homofóbicas etc, que encontram uma certa ressonância social e que são vistas como mensagens legítimas no debate político. Nós temos que ver como algo preocupante o fenômeno de concordar com certas afirmações, mas também a normalização dessas afirmações. Quando digo “não concordo, mas isso faz parte do debate político”, eu estou admitindo que esse é um discurso aceitável e do qual podemos concordar em discordar. Quando estamos em discursos de ódio, não existe concordar e não discordar, eles não podem existir! E um terceiro fator que é efetivamente a penetração dessas ideias em pessoas por forte influência no governo e na mídia. É muito preocupante que vemos isso em deputados, assessores e secretários que reverberam essas ideias, sobretudo no círculo em torno dos filhos do Presidente Jair Bolsonaro. Nós temos muito essas teses que não são de fato exclusivas dos supremacistas brancos neonazistas, mas são compartilhadas por esses grupos políticos e por isso estabelecem certos vínculos. Não é uma relação tão evidente, por isso nem todas as pessoas que reproduzem essas mensagens são filiados a grupos neonazistas e supremacistas, mas demonstram ideias iguais, que fazem com exista essa proximidade entre os grupos. 

Como podemos reconhecer e identificar um discurso supremacista?

Evidentemente é mais fácil à medida que ele deixa de ser o dog whistle. Então quando nós vemos diretamente menções a símbolos e falas completamente preconceituosas, é fácil identificar. Muito mais difícil, é justamente essa estratégia empregada pelas mensagens acobertadas. Não tem uma fórmula que eu possa dizer “assim nós identificamos”. Eu que estudo esse tema, tem coisas que me passam batido, porque eu não conheço todas as simbologias e expressões usadas por esses grupos, que se modificam muito rapidamente. O que eu diria é que quando surge alguma suspeita, devemos ficar de olho. Obviamente não é clavar que algo é isso, se não entramos em outras teorias da conspiração, mas é considerar o contexto e as coincidências que acontecem. Quando uma mesma pessoa faz um gesto que supostamente está ajeitando o paletó, mas é um gesto que os supremacistas brancos fazem, e a mesma pessoa já twittou um poema e citou uma expressão em latim usada por neonazistas, começa a ser coincidências demais. Então é preciso reparar nisso e termos os cuidados necessários, principalmente não achar que esse tipo de ideia desapareceu e que se limita aos símbolos. Infelizmente, não precisamos da suástica para afirmar que algo é próximo ao Nazismo, mas sim, analisar qual o conteúdo da mensagem.

Qual o trabalho desenvolvido pelo Museu do Holocausto de Curitiba?

O Museu do Holocausto de Curitiba foi criado no final de 2011 e surge por iniciativa de integrantes da comunidade Judaica de Curitiba. Ele é o primeiro e único Museu dedicado ao tema no Brasil. Temos o espaço expositivo, que em um contexto normal é o principal atrativo. Fora de pandemia, recebemos anualmente cerca de 20 mil visitantes, dos quais, a maioria são grupos escolares. As visitas são mediadas por uma narrativa coerente da exposição e do projeto do Museu. Temos alguns pilares fundamentais que estruturam o funcionamento, não só da exposição, mas de tudo o que fazemos. Não é um Museu sobre a morte, mas que fala sobre a vida das pessoas que passaram pelo Holocausto. Evitamos trabalhar o Holocausto como um acontecimento quantitifado, os números não são o foco, mas as pessoas, rostos, nomes e trajetórias individuais, porque é a história delas que permite gerar uma empatia entre visitante e o tema que está sendo abordado. Um terceiro elemento é que o Holocausto não é tratado como um evento fora da história e como se os nazistas fossem demonios que simplesmente por serem malvados, fizeram um genocidio. Isso não significa que o que aconteceu tenha sido menos grave, mas a questão é que não precisamos de monstros para praticar monstruosidades. O Holocausto foi um ato humano. E é justamente isso que permite que relacionamos o Holocausto com o nosso presente. Tudo aconteceu a menos de 80 anos e a forma como nós pensamos como humanidade e nos relacionamos não é radicalmente diferente do que permitiu o Holocausto. Por isso, o aprendizado serve para pensarmos sobre intolerância religiosa, racismo, homofobia, machismo, entre outros. No sentido de pensar que os fatores que fizeram o Holocausto ser possivel, são fatores que estão fazendo agressões hoje em dia serem possíveis. A medida que entedemos o que foi o Holocausto como um fenômeno histórico e humano, podemos entender melhor o nosso presente. E um melhor conhecimento, nos dá melhores ferramentas para combatermos o que está acontecendo.

 

        Estudantes de jornalismo da UEPG em visita mediada ao Museu do Holocausto de Curitiba em 2018. Foto:Cássio Murilo

Qual é a importância de preservarmos a história e a memória?

Quando estamos falando em memória, falamos em algo que está em constante construção, então não podemos dizer que preservarmos a memória. O passado não se modifica, mas a forma como nos relacionamos com esse passado sim. Então a memória não é o passado, mas como nos relacionamos com ele no presente. Estamos constantemente construindo a memória, porque acreditamos que é relevante para os dilemas que enfrentamos na atualidade. Espero que chegue um dia, apesar de não ser otimista, em que se modifique radicalmente a forma como nos ligamos ao passado e possamos dizer que não tem nada a ver com o presente, mas ainda não é possível. Acreditamos que o passado do Holocausto nos dizer muito sobre hoje em dia. Então a forma como queremos lembrar esse passado é de uma forma que nos dê ferramentas para a promoção dos Direitos Humanos, para a construção de uma cultura democrática e para o combate das intolerâncias e preconceitos. Não é que os nazistas estão nos ensinando algo, mas somos nós que estamos nos relacionando ao passado e atribuindo essa noção à memória.

E quais os paralelos que podemos fazer entre o passado do Holocausto e do nosso presente?

Infelizmente são muitos. Uma coisa importante é lembrarmos que o Holocausto é parte da história e, como qualquer outro genocidio, é um processo. Por isso, sempre temos que ter em mente em que momento do processo histórico estamos falando. Por exemplo, quando falamos sobre o Holocausto estamos falando sobre queima de livros e censura? Sim, podemos e devemos relacionar isso a censuras de informações que ocorrem hoje em dia. Isso não significa que qualquer censura seja um Holocausto, até porque quando se queimava livro na Alemanha Nazista, ninguém falava em genocidio naquele momento. Porém, olhando agora, sabemos que foi um momento importante para possibilitar o genocidio. E é assim que podemos fazer paralelos, como o controle de informação e também casos de racismo e intolerância religiosa. Outro paralelo são os projetos e práticas autoritárias, que não precisam chegar ao nivel do controle autoritário nazista para que possamos, a partir do passado, refletir sobre o presente. Até em casos mais explicitos, de práticas efetivamente genocidias, porque o Holocausto não foi o primeiro e nem o último. Então, é possível fazer paralelos em diferentes momentos históricos e camadas, se pensarmos em todos os processos que comuniram no Holocausto, desde as primeiras falas autoritarias do Partido Nazista, passando pela censura até chegar ao Genocidio.

Como o Museu está atuando durante o momento de pandemia?

O Museu do Holocausto de Curitiba está fechado desde março de 2020 e não tem uma previsão, em curto prazo, de reabrir. Mesmo em momentos que legalmente poderíamos abrir nosso espaço físico com adaptações, escolhemos não abrir, por conta do perigo representado pelo vírus. O Museu só irá reabrir em um momento que sentimos que existe segurança para os visitantes e para a equipe. Mas isso não significa que o trabalho parou. Por ser um Museu, a exposição é sempre a parte mais visível, mas existem outros trabalhos, como construção de acervo, pesquisa histórica e catalogação de histórias de sobreviventes do Holocausto, que permanecem sendo feitas, mesmo com a equipe em home office. Além disso, o Museu na pandemia intensificou as atividades nas redes sociais. Antes do vírus, elas já eram mais do uma rede de divulgação e método de atrair visitantes, mas um meio para compartilhar nossas mensagens e ideais. Durante a pandemia, elas se tornaram a principal rede de contato entre Museu e público, com publicações regulares que seguem as diretrizes educativas da nossa equipe. Temos também uma série de eventos online realizados, tanto organizados pelo Museu, como por instituições parceiras. Existe  La Red Latinoamericana para la Enseñanza de la Shoá (LAE), ou Rede Latinoamericana para o Ensino da Shoá em português, que é uma rede formada por diferentes museus memóriais na região que tratam sobre o Holocausto e que promovem uma série de eventos online. O Museu do Holocausto de Curitiba continua ativo de diferentes formas, o que está fechado é a exposição. 

 

Acompanhe o Museu do Holocausto de Curitiba online:

Site: https://www.museudoholocausto.org.br/

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Instagram: https://www.instagram.com/museudoholocausto/

Twitter: https://twitter.com/MuseuHolocausto 

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