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Encerramento da 10ª Semana de Enfrentamento às Violências Contra Crianças e Adolescentes abordou parentalidade positiva

Minicurso debateu a educação sem violência e os limites da legislação protetiva no Brasil 

Karen Stinsky 
Foto: Karen Stinsky

A 10ª Semana de Enfrentamento às Violências Contra Crianças e Adolescentes encerrou na última quarta-feira (21) com o minicurso “A parentalidade positiva como forma de prevenção à violência contra crianças”. A atividade teve como objetivo promover ações de conscientização e foi ministrada pelas professoras do curso de Direito, Maria Cristina Baluta e Dirceia Moreira, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). O evento integrou a programação alusiva a 18 de maio, data que marca o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. 

De acordo com levantamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), realizado em 2018, os casos de violência física são predominantes contra crianças, representando cerca de 25% de todas as formas de abuso infantil. Aproximadamente 80% dessas ocorrências envolvem vítimas com menos de quatro anos de idade. Segundo a Academia Americana de Pediatria (AAP), esses números são imprecisos devido à subnotificação e à dificuldade de identificação dos casos. Entre os principais fatores que dificultam o registro estão a ausência de testemunhas, a resistência dos agressores em admitir suas ações, o fato de muitas vítimas serem pré-verbais ou estarem gravemente feridas e/ou emocionalmente abaladas para relatar o ocorrido, além de muitas vezes as lesões serem inespecíficas. 

Para a professora Maria Cristina Baluta, o mapeamento dos casos e, ainda, a regulamentação das políticas de proteção à infância, sofrem déficits importantes. De acordo com ela, é necessário observar as violências contra crianças a partir de três instâncias específicas: branca, negra e indígena, considerando as particularidades sociais e históricas. Além disso, ela apontou que cerca de 90% dos casos de violência infantil ocorrem dentro do ambiente familiar. “A legislação sempre se preocupou com a criança fora de casa, mas a que está dentro do lar é invalidada como sujeito de direitos. Ela é vista apenas como propriedade dos pais”, afirma. 

Foto: Karen Stinsky

A docente também abordou os estilos parentais, dividindo-os em quatro categorias: o autoritário, pautado na imposição e obediência – exemplificado pela frase: “você vai fazer porque eu estou mandando”; o permissivo, que se traduz em: “faça o que quiser”; o negligente, caracterizado por: “o que eu tenho a ver com isso?”; e, por fim, o democrático (ou autoritativo), que considera o comportamento e a fase de desenvolvimento da criança, sendo representado pela postura indicada por: “vamos conversar sobre isso”. De acordo com a professora, a parentalidade positiva se fundamenta no bem-estar da criança em todas as suas dimensões — física, mental e social.

Segundo a professora Dirceia Moreira, historicamente as crianças são inviabilizadas. Mesmo com a existência de leis e políticas públicas voltadas à proteção infantil, essas normas ainda são subjetivas e suscetíveis a múltiplas interpretações. “Esse é o problema do tratamento jurídico disso. Apesar de haver leis muito bem regulamentadas, elas são abertas à interpretação, o que interfere nessa ‘elasticidade’ do que é considerado moderado e do que configura maus-tratos ou tortura”, pontua. A professora destaca ainda que a responsabilidade por essa interpretação cabe ao Poder Judiciário, majoritariamente composto por homens, brancos, heterossexuais e de classe média, o que pode influenciar diretamente nas decisões e no reconhecimento das violências praticadas contra crianças. 

Moreira também ressalta que as formas mais comuns de violência infantil ocorrem no processo de educar. Conforme apontam os dados do Atlas da Violência 2024, nos casos envolvendo infantes (0 a 4 anos) e crianças (5 a 14 anos), a residência aparece como o principal local das ocorrências, registrando, respectivamente, 67,5% e 65,6% das notificações. Já a violência ocorrida em escolas representa 5,4% dos casos. No entanto, por exemplo, no caso de infantes 22% das notificações não é possível identificar o local da violência, o que evidencia a necessidade de aprimorar a coleta e o detalhamento das informações. Para a professora, os dados demonstram que a violência infantil se tornou uma prática cultural, o que exige ações de transformação. “Nosso papel é discutir, debater e informar que há possibilidade de criar e educar as crianças sem violência”, enfatiza.

Foto: Karen Stinsky

Segundo o Manual de Atendimento às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violências, publicado em 2018, crianças e adolescentes podem ser submetidos a diversos tipos de violência. Entre elas, destacam-se: violência extrafamiliar, institucional, social, urbana, macroviolência, bullying, violência virtual, cultos ritualísticos, violência doméstica ou intrafamiliar, violência física, sexual, psicológica e negligência. Além dessas, o manual também aponta formas específicas, como a síndrome de Munchausen por procuração, violência química, intoxicações e envenenamentos, filicídio, autoagressão, práticas de atividades de risco, lesões autoinfligidas e tentativas de suicídio.

No Brasil, os direitos fundamentais de crianças e adolescentes foram especificamente reconhecidos por meio da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também estabelece diretrizes sobre situações de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, incluindo menções específicas aos maus-tratos e às medidas cabíveis em casos de violação desses direitos por parte de pais ou responsáveis.

A 10ª Semana de Enfrentamento às Violências Contra Crianças e Adolescentes foi uma iniciativa do Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assessoria sobre Infância e Adolescência (Nepia). A programação ocorreu dos dias 15 a 21 de maio e contou com a parceria da Comissão Municipal Intersetorial de Enfrentamento às Violências contra Crianças e Adolescentes (Ceves) e dos projetos de extensão Núcleo de Defesa dos Direitos da Infância e Juventude (Neddij), Núcleo Maria da Penha (Numape), Núcleo de Estudos sobre Violência Intrafamiliar (Nevin), Processos Migratórios e Intercâmbios: Inclusão Social e Diversidade Cultural (Promigra) e Parentalidade Positiva na Primeira Infância (Papoprin).

Foto: Karen Stinsky

Violência intrafamiliar com foco em proteção de crianças e adolescentes é tema de palestras e minicursos na UEPG

Acadêmicas do NEVIN abordam legislação, impactos psicológicos e mecanismos de denúncia, reforçando a necessidade de romper padrões de abuso e combater a normalização da violência doméstica

 

Na terça-feira, dia 20 de maio, às 19h, no grande auditório da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), realizou-se o minicurso “Os principais aspectos que permeiam os elementos do ciclo da violência intrafamiliar”, dirigido pelas extensionistas bolsistas do projeto NEVIN: Maria Luiza Hass, Rafaele Nayane Dutra, Vitória Machado Wieczorek e Isabelle Marcondes. O Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assessoria sobre a Infância e Adolescência (NEPIA) convidou as acadêmicas a palestrar durante este evento. A programação daquela noite foi organizada em 5 blocos: A Família, A Violência, O Ciclo da Violência, Legislação e o bloco de perguntas. Cada uma delas dissertou sobre um dos temas.

 

O primeiro bloco, dirigido por Maria Luiza Hass, contextualizou uma das leis que regem a família em nosso país: a Lei 8.742/93 – LOAS, que define como família pessoas que vivem sob o mesmo teto. Ela também falou sobre as concepções de família: Família natural, extensa, substituta, nuclear, ampliadas/não convencionais, monoparentais, chefiadas por mulheres, unipessoais, recompostas, pluramental, homoafetiva e anaparental. “O compromisso da sociedade com crianças e adolescentes não pode errar”, destaca a bolsista sobre a ideia de proteção às famílias.

 

O segundo bloco, dirigido por Rafaele Dutra, discute sobre a violência fazer parte do processo sócio-histórico da constituição da sociedade, mas deixa clara sua colocação “não existe violência que justifique qualquer forma de educação”. Também trouxe a diferença entre violência doméstica e violência intrafamiliar. A violência doméstica envolve outras pessoas, além de qualquer outra com vínculo parental. Segundo o Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (OMS, 2002), a violência é caracterizada como: abuso físico, psicológico, sexual e  negligência. Crianças ao passar por violência intrafamiliar, são suscetíveis a desenvolver transtornos mentais, ficar violentas e desencadear tentativas de suicídio.

 

O terceiro bloco, dirigido por Vitória Machado, traz o ciclo da violência, também chamado de “espiral da violência”, que foi desenvolvido a partir da análise da violência praticada contra a mulher no âmbito doméstico. O espiral consiste em três fases: aumento da tensão, ação de violência/agressão e arrependimento (ou Lua de Mel). O ciclo abrange as situações de agressão também perpetradas contra crianças e adolescentes. A acadêmica replicou uma fala que perpetua pela sociedade a tempos “criança não tem que querer, eu to mandando e você tem que obedecer”. A frase reforça a ideia do adultocentrismo, que deixa crianças e adolescentes em um espaço de imaturidade, sem lhe conceder a voz. Além disso, o “ciclo da violência” tem sido utilizado como uma ferramenta de análise e compreensão das dinâmicas de abuso em contextos de violência intrafamiliar, sendo empregado em julgamentos para condenar os agressores.

 

O ciclo da violência intrafamiliar é um padrão repetitivo de abuso que acontece dentro do ambiente familiar, pode ser entre casais, entre pais e filhos, ou até entre irmãos. Deve ser lembrado e denunciado, para que não continue sendo algo relatado “normal” pela sociedade.

 

 Seguindo para a última palestra, dirigida por Isabelle Marcondes, a legislação olha para a violência intrafamiliar como uma grave violação de direitos. A extensionista cita diversos artigos que garantem a proteção de crianças e adolescentes, O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),  também a Lei Maria da Penha, pois a violência impacta os filhos, e a Lei da Escuta Protegida, que avança no acolhimento e escuta de vítimas e testemunhas. A estudante pontua em sua fala que “é totalmente função do estado fornecer capacitação para profissionais e recursos para as políticas públicas”.

 

Segundo o relatório “Violências contra crianças e adolescentes em dados”, realizado em 2024, pelo projeto Cadê Paraná – Crianças e Adolescentes em Dados e Estatísticas, em 2020 a 23, mais de um terços dos casos registrados no Disque 100 (35%) e no Sinan (37%) são de violência contra crianças e adolescentes. Sendo nove a cada dez violações registradas no Disque 100 envolvendo violência sexual, física ou psicológica contra crianças e adolescentes apontam que não foi a primeira vez que a violência aconteceu. 

 

Em  2023, o Disque 100 registrou 53 violações referentes a violência psicológica contra criança ou adolescente a cada hora. Em 2022, a cada 8 minutos uma notificação de violência física contra criança ou adolescente foi registrada no Sinan. Cerca de 84% das situações de violência sexual, física e psicológica contra crianças e adolescentes registradas no Disque 100 tem como agressor alguém da família . No Sipia, a porcentagem é de 57% e no Sinan, 44%.

 

Apesar de todas as leis em volta da busca do fim da violência infantil, a professora do curso de Serviço Social da UEPG, Cleide Lavoratti, palestrante do evento pela manhã que também tratou sobre a violência intrafamiliar,  realizado NEPIA, cita os fatos que impedem que essas legislações se concretizem como: o adultocentrismo (abuso de poder), menorismo (permitir no olhar da infância empobrecida), lógica reparativa e emergencial, setorização das políticas públicas (sem interação entre os setores, oq impede uma resolução de violências que por vezes estão interligadas). “A concepção idealizada de família sagrada e intocável, precisa acabar e ser vista como uma instituição social, criada por homens. A partir daí conseguiremos quebrar essas expectativas e atender a criança como ela precisa”, afirma Cleide. 

 

A assistente social, Luciana Silvestre, ressalta a importância da informação sobre os canais de denúncias e dos responsáveis terem capacitação correta para receber a denúncia, “A palestra mostra como o responsável pela denúncia precisa ser capacitado para ouvir a vítima. Não fazer ela reviver desnecessariamente o trauma, mas sim saber ouvir quando a vítima procura relatar”, destaca Luciana.

 


Denúncia em Ponta Grossa:

Conselho Tutelar: 3220-1065

CT Leste: ramal 2294-2293

plantão: (42) 98876-1764

CT Oeste: ramal 2062-2063

Plantäo: (42) 98876-1930

CT Norte: ramal 2060-2061

Plantão: (42) 98876-1339

CT Sul:(42) 3220-1048

Ramal 2207-2208

Plantão:(42) 98875-8762

Polícia Civil Municipal: 153

Polícia Militar: 190

Polícia Civil: 197


Texto por Amanda Grzebielucka, Leonardo Correia e Lorena Santana

Palestra instrui como agir em casos de abuso do dia a dia contra crianças e adolescentes

Palestra “Cuidando e protegendo: Formação para atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência”. Foto: Isabelli Piva

 

Na manhã de 16 de maio, no Grande Auditório do Campus Central da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), ocorreu a palestra: “Cuidando e protegendo: Formação para atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência”, promovida pela Comissão Municipal Intersetorial de Enfrentamento às Violências contra Crianças e Adolescentes (CEVES), com apoio do Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assessoria sobre Infância e Adolescência (NEPIA). O evento esteve relacionado à programação da 10º Semana de Enfrentamento às Violências contra Crianças e Adolescentes.

 

A palestra contou com a presença de especialistas, como a delegada chefe do Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente (NUCRIA), Ana Cunha Carvalho e o perito médico legista da Polícia Científica do Paraná, Igor Azevedo.

 

O evento teve como objetivo relembrar o 18 de maio e informar sobre como agir na identificação de um caso de violência ou abuso, desde a denúncia até o acolhimento da criança ou adolescente, assim como todo o processo de investigação. Os palestrantes evidenciaram a importância da denúncia. Ao receber a revelação da vítima, é necessário prestar assistência para realização de queixa na polícia.

 

A delegada do NUCRIA, que atende casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes e abandono parental, explicou como instruir as crianças a identificar situações de abuso. Com a instrução básica, a criança reconhece o toque invasivo e relata para uma figura de confiança, essa que muitas vezes é um membro da família ou funcionário da educação. A delegada também instruiu a dizer às crianças sobre lugares proibidos de seu corpo, as cinco partes íntimas, buscando trazer para perto da realidade da criança sem deixá-la com medo, destacando o que é o certo e errado.

 

Segundo a delegada, 98% dos abusos são cometidos por familiares ou pessoas próximas. Os abusos iniciam por toques ou pedidos para sentar no colo do adulto. A criança, sem instrução, não identifica a malícia dos toques, e por não sentir dor, não associa à uma violência. Com o passar do tempo, os abusos se tornam frequentes e intensos. No momento em que a criança sinaliza revelar a situação para uma figura de confiança, o abusador oferece brinquedos e doces para comprar o silêncio da vítima ou inicia uma série de ameaças, como: realizar o abuso para seus irmãos mais novos, ou caso o abusador seja preso (um membro familiar) a família perderá sua fonte de renda.

 

O médico legista trouxe dados sobre as vítimas de violência e abuso sexual. A maioria das crianças são do sexo masculino. Já os casos de violência aguda recaem sobre mulheres e adolescentes. Em 90% das situações, os agressores são homens, podendo ser pai da vítima. Ainda de acordo com o médico, o exame físico mostra características que podem identificar o trauma intencional, como: desnutrição, lesões, hematomas, queimaduras, escoriações. O palestrante apontou que 30% das crianças apresentam traumatismo craniano, Síndrome do Bebê Chacoalhado (Shaken Baby Syndrome) e danos no sistema nervoso central.

 

Desde 2012, a lei nº 12.650, que alterou o Código Penal, é estendido o tempo para a realização da queixa contra o abuso ocorrido. A partir dos 18 anos completos, a vítima terá o prazo de até 20 anos para realizar a denúncia. A lei é conhecida como Lei Joanna Maranhão, em homenagem à nadadora brasileira que realizou denúncias de abuso contra um treinador da sua infância.

 

A 10º Semana de Enfrentamento às Violências contra Crianças e Adolescentes é um evento de mobilização em memória ao dia 18 de maio, o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, relembrando o caso Araceli, menina de 8 anos que sofreu várias formas de abuso, em 18 de maio de 1973. O evento tem o objetivo de comunicar sobre as violências realizadas contra crianças e adolescentes. 

Caso identifique uma criança ou adolescente sofrendo abuso ou outras violências, ou se receber uma denúncia, informe a polícia pelos telefones: 100, 181 ou busque uma unidade policial perto de sua casa.


Por Isabelli Piva e Maria Fernanda Andrusko

Por uma sociedade sem manicômios

Em 2025, completam-se 38 anos do movimento que deu origem à Reforma Psiquiátrica

Malu Dip e Rafaela Rothstein
Foto: Isabel Baldoni/PBH

 O 18 de maio marca a luta brasileira por uma sociedade sem manicômios. O Dia Nacional da Luta Antimanicomial é marcado por reivindicações contínuas dos movimentos sociais organizados em defesa de um tratamento humano, respeitoso e digno às pessoas com transtornos mentais. 

 A data remete ao Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, a primeira manifestação pública organizada pela extinção dos manicômios. Com o objetivo de superar o modelo manicomial, que historicamente isola e segrega pessoas com transtornos mentais, e garantir um tratamento humanizado e respeitoso com a liberdade e a autonomia do indivíduo, cerca de 350 trabalhadores de saúde mental ocuparam as ruas de Bauru, em 1987, empunhando cartazes e oportunizando a publicação de seu próprio manifesto, o Manifesto de Bauru

 O documento destacava a atitude disruptiva ao recusarem o papel de agentes da exclusão e da violência institucionalizada, que desrespeitam os mínimos direitos do indivíduo. Criticava os mecanismos de controle e produção social da loucura estabelecidos pelo Estado. O manifesto traz: 

 “O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.”

 O documento foi um dos primeiros passos para denunciar que o mesmo Estado que gerenciava os serviços relacionados à saúde mental também impunha e sustentava os mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência.

 Além disso, foi a ação inicial para a discutir a Reforma Psiquiátrica Brasileira, projeto apresentado pelo então deputado Paulo Delgado, em 1989, inspirado pelas ideias e práticas do psiquiatra Franco Basaglia, que revolucionou as práticas psiquiátricas a partir da década de 1960, na Itália. O projeto só foi aprovado e sancionado 12 anos depois, a Lei nº 10.216/2001, que ficou conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei Antimanicomial ou Lei Paulo Delgado. 

 Desde então, a Reforma representou o fechamento gradual dos manicômios e hospitais psiquiátricos, inaugurando sua maior conquista: a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A rede integra o Sistema Único de Saúde (SUS) e é organizada para prestar serviços de saúde mental, desde a prevenção até a recuperação, em diferentes níveis de cuidado, incluindo Unidades Básicas de Saúde (UBS), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), unidades de acolhimento, serviços residenciais terapêuticos e outros. O Conselho Federal de Psicologia e seus órgãos regionais assumem um papel central em difundir e incentivar a pesquisa e o debate acerca do assunto. 

Fontes: 

https://bvsms.saude.gov.br/20-anos-da-reforma-psiquiatrica-no-brasil-18-5-dia-nacional-da-luta-antimanicomial/#:~:text=O%20projeto%20de%20reforma%20psiqui%C3%A1trica,Antimanicomial%20e%20Lei%20Paulo%20Delgado.

https://www.gov.br/saude-de-a-a-z-1/pt-br/composicao/saes/desmad/raps

https://sp.cut.org.br/noticias/encontro-de-bauru-30-anos-da-luta-por-uma-sociedade-sem-manicomios-80e9

https://www.brasildefato.com.br/colunista/luiza-dulci/2024/05/13/celebracao-e-desafios-da-luta-antimanicomial/

 

 

Jardim do Maio Laranja promove conscientização sobre a violência contra crianças e adolescentes

Jardim simbólico marca o 5° evento da X Semana de Enfrentamento às Violências contra Crianças e Adolescentes em Ponta Grossa

Bebel Costalonga e Malu Dip
Jardim de flores em alusão à campanha “Faça Bonito”. Foto: Malu Dip.

 Na manhã do dia 15, aconteceu na praça Santos de Andrade, localizada em frente ao campus central da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), a construção do jardim alusivo à campanha “Maio Laranja”, que faz parte da programação da X Semana de Enfrentamento às Violências contra Crianças e Adolescentes.

 A campanha é nacional e foi instituída pela Lei 14.432/2022. É realizada anualmente no mês de maio, quando acontecem mobilizações em prol do combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes e busca dar visibilidade ao tema. O slogan principal é “Faça Bonito”, incentivando a sociedade a participar da causa, juntamente com flores amarelas e laranjas, que simbolizam a fragilidade da infância e adolescência. 

 O Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes é o 18 de maio, que foi instituído pela Lei 9.970/2000, a partir do caso Araceli Cabrera Sanches. Uma menina de oito anos que foi sequestrada, violentada e assassinada por um grupo de  jovens, ao sair de casa para ir à escola, em 18 de maio de 1973.    

 De acordo com a assistente social do Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assessoria sobre Infância e Adolescência (Nepia), Luiza Stelle Linhares da Rocha, a campanha deste ano contou com a colaboração de extensionistas do Nepia e acadêmicos dos projetos de extensão dos cursos de Serviço Social e Direito com o objetivo de abranger outras visões e experiências. A profissional pontuou também que o maior desafio encontrado para a realização da campanha anual é a mobilização da sociedade. “A gente tem um extensionista que fala que se nós fazemos esse evento é porque não estamos conseguindo proteger as nossas crianças e adolescentes, porque precisamos falar ainda para a sociedade que a criança precisa ser cuidada”, lembra. 

 O Nepia, em conjunto com a Comissão Municipal Intersetorial de Enfrentamento às Violências Contra Crianças e Adolescentes (CEVES) realizará até o dia 21/05 diversas programações que compõem a X Semana de Enfrentamento às Violências contra Crianças e Adolescentes. Para mais informações, confira a página do Instagram @nepiauepg. 

Representantes do curso de Serviço Social da UEPG e do Nepia, na X Semana de Enfrentamento às Violências contra Crianças e Adolescentes. Foto: Malu Dip.

 

 

Roda de conversa promove diálogo sobre desafios da maternidade 

A ação, que integra a campanha “Onda Furta-Cor Ponta Grossa”, foi realizada de maneira gratuita para mães e gestantes

Lorena Santana

 

 Com o objetivo de ouvir as mães, na tentativa de diminuir o impacto da falta de atenção à saúde mental materna, foi realizada no dia 12 de maio, uma roda de conversa com o tema “Exaustão Materna”. A mediação foi feita pelas Doulas Juliane Carrico e Mariana Toledo. 

A roda reuniu principalmente mães da comunidade do bairro Cará-Cará. Foto: Lorena Santana

 Dentre os assuntos abordados, como a invisibilidade e desvalorização do trabalho materno, a culpa que a cultura patriarcal impõe às mulheres e a competição que a sociedade submete as mães, as mulheres se sentiram à vontade para compartilhar relatos e trocar experiências.

 Segundo Mariana Toledo, a maternidade se torna pesada para muitas mulheres, principalmente quando o genitor não exerce a paternidade. “Pai não é rede de apoio. Assim como a mãe, ele tem responsabilidades acerca da criança. A partir do momento que a sociedade constrói o pai como um ajudante, a mãe se sobrecarrega, encara a exaustão. Ela se culpa e se sente ingrata”, declara Mariana. 

 A participante da conversa, Bruna Burg, reconhece que a maternidade tem peso diferente a depender da companhia que a mulher tem durante esse período. Socialmente, as mulheres são frequentemente colocadas na posição de permanecer em casa com as crianças, sendo responsabilizadas por garantir que tudo esteja pronto para receber o companheiro que passou o dia fora.  “O puerpério é uma das fases mais difíceis para uma mulher, mas quando ao lado dela está alguém que compreende esse processo, ao invés de cobrar as ‘obrigações de dona de casa’, as coisas se tornam mais leves”, analisa Bruna. 

 De acordo com pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma a cada cinco mulheres brasileiras sofre com depressão pós-parto, no período de 6 a 18 meses do bebê. Juliane Carrico explica que o pós-parto é sempre bastante intenso e a mulher se torna muito mais sensível por conta da grande quantidade de hormônios que se perde no momento do parto. Se quem está ao redor daquela mulher não tem preparo e conhecimento sobre isso, esse momento pode se tornar ainda pior. “O objetivo da campanha Maio Furta-Cor é trazer o assunto da saúde mental materna, tão minimizado e pouco explorado, à tona, para que as mulheres vejam nesse espaço um lugar seguro e compreensivo, longe de qualquer julgamento”, esclarece Juliane. 

 Até o fim do mês de Maio ocorrerão ações voltadas à saúde mental materna. O cronograma completo pode ser consultado através do perfil do Instagram @ondafurtacorpontagrossa.

 

 

Caminhada promove conscientização sobre violência contra crianças e adolescentes

O evento dá início às atividades do mês do enfrentamento à exploracão e o abuso infantil

Amanda Grzebielucka e Pietra Gasparini 

 

 Ontem, 12 de maio, aconteceu a primeira Caminhada Maio Laranja, visando conscientizar e combater a exploração e o abuso sexual infantil em Ponta Grossa. Ela foi promovida pela Comissão Municipal Intersetorial de Enfrentamento às Violências Contra Crianças e Adolescentes (CEVES). Começou em frente à Igreja Sagrado Coração de Jesus, na praça Barão de Guaraúna, e foi até o Parque Ambiental. 

Alem da CEVES, Várias frente se mobilizaram para a caminhada, como escolas, servidores públicos e universitários. Foto: Amanda Grzebielucka.

 A ação faz parte da programação da Semana de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes. A violência pode ser caracterizada por física, psicológica, institucional ou sexual e pode acontecer também por meio de abandono e maus tratos. 

 A  enfermeira da Fundação Municipal de Saúde, conselheira de Direitos da Criança e do Adolescente de Ponta Grossa e vice-presidente da CEVES, Débora Viviane Stadler, entende que a caminhada vem como um grito pelas crianças e  adolescentes que sofrem violência  sexual e exploração. “É importante que toda a comunidade saiba do seu dever de denunciar os abusos e quais são os canais de denúncia para fazer isso”, afirma. 

 Débora destacou as fontes da prefeitura que atuam no combate e enfrentamento dessas violências. “Temos o Conselho de Direitos, que é da Secretaria da Família, um fluxo da Fundação Municipal de Saúde para atender essas crianças vítimas de violência e também a parte da Fundação de Assistência Social, que tem nos CREAS e nos CRAS, os grupos de fortalecimento de vínculos”, explica.

O movimento Faça bonito é uma campanha nacional que visa  enfretamento à violência sexual contra crianças e adolescentes. Foto: Pietra Gasparini.

 O Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assessoria sobre infância e adolescência (NEPIA), projeto do curso de Serviço Social da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), é uma das frentes da CEVES e também faz parte da organização. A professora integrante do projeto, Cleide Lavoratti, destaca a importância das políticas públicas para o enfrentamento. “Precisamos de políticas que tracem metas a curto, médio e longo prazo, que estabeleçam protocolos e fluxos de atendimento à criança em situação de violência, para que, realmente, a gente tenha tanto ações preventivas como de atendimento às vítimas e de responsabilização dos autores da violência. Só dessa forma conseguiremos garantir a proteção integral dessa comunidade. A sociedade também é responsável pelo enfrentamento”, afirma Lavoratti. O Núcleo realizará uma série de atividades em alusão ao Maio Laranja como: palestras na UEPG, capacitações nos CRAS e oficinas para comunidade. Confira a programação completa no Instagram  @nepiauepg.

 

Por que maio?

 Em 1973, no dia 18 de maio, uma menina de Vitória/Espírito Santo, foi sequestrada e assassinada numa orgia. Teve o seu corpo desfigurado pelo uso de algum tipo de ácido e foi encontrada somente após seis dias do desaparecimento. Seus agressores nunca foram punidos.

 Após forte mobilização, o movimento em defesa dos direitos de crianças e adolescentes conquistou a aprovação da Lei Federal 9.970/2000, que instituiu o 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, tendo como objetivo mobilizar a sociedade no engajamento pelos direitos e na luta pelo fim da violência sexual de crianças e adolescentes. 

 

Denúncia

Se tiver suspeita, conhecimento, ou presenciar qualquer violação de direitos contra crianças e adolescentes, denuncie:

Conselho Tutelar: 3220-1065

CT Leste: ramal 2294-2293

plantão: (42) 98876-1764

CT Oeste: ramal 2062-2063

Plantäo: (42) 98876-1930

CT Norte: ramal 2060-2061

Plantão: (42) 98876-1339

CT Sul:(42) 3220-1048

Ramal 2207-2208

Plantão:(42) 98875-8762

Polícia Civil Municipal: 153

Polícia Militar: 190

Polícia Civil: 197 

 

Programação semana de enfrentamento às violências contra crianças e adolescentes. Imagem divulgação: NEPIA.

 

 

 

Maternidade na dança: mudanças físicas e emocionais

Ser mãe abre oportunidade para ver a dança a partir de uma nova visão

Ester Roloff

 

 O mundo da dança envolve dois campos distintos, o do esporte e o da arte. Essa característica influencia não apenas a saúde física, mas mental e emocional dos bailarinos e bailarinas. Relatos de mulheres que vivenciaram a maternidade no mundo da dança e sentiram no corpo e na rotina as mudanças que vêm com a nova vida como mãe, são registros importantes para compreender essa realidade vivida.

Foto: Juliane Goltz.

 Helen Jansen, de 31 anos, iniciou na dança aos 16 anos, e com 22 anos teve sua primeira filha. Ela fez aula de balé avançado e deu aulas grávida para uma turma de baby class. Com o nascimento da filha, Helen ficou sem dançar e lecionar por cinco meses, mas foi na gravidez da segunda filha que a situação foi mais difícil. “Eu já estava ensaiando para um espetáculo, já tinha comprado o figurino e tive que parar de dançar por ter um descolamento de placenta e por conta disso demorei a retornar” relata. 

 A dança ajuda a mãe no processo de cura e controle emocional. “Eu não consigo ficar sem a dança hoje, faz toda a diferença para o meu emocional”, conta Helen. Ela comenta como foi importante a dança para voltar a se conectar com o próprio corpo. “Quando temos filhos, a gente se descobre uma nova mulher, então não é mais sobre mim. É quando eu danço que me reconecto comigo mesma, com a minha própria identidade”, aponta.

 Para Helen, quando uma mãe tem a intenção de voltar ou iniciar uma jornada na dança é preciso se planejar mais do que quando não se tem filhos. O processo foi difícil para a dançarina que precisou se adaptar ao seu novo corpo após a maternidade. “Eu escolhi o jazz dance para voltar a dançar, porque eu não me identifico mais com o ballet anatomicamente, apesar de amar o ballet clássico o meu corpo não responde mais a ele”, afirma.

 Glaucia Staveski, de 50 anos, era baliza da comissão de frente da banda marcial de Ponta Grossa quando mais nova e sempre gostou de dançar, mas entrou de fato para o mundo da dança há 7 anos. “Eu sempre amei a dança, então quando minha filha com quatro anos mostrou interesse em balé eu fiquei muito feliz”, lembra. A filha de Glaucia continua a dançar até os dias de hoje, e quando estava com 15 anos, convidou a mãe para fazer aulas na escola que praticava. “Tinham sido abertas aulas de jazz iniciante para adultos, eu vi como uma oportunidade para realizar meu sonho de dançar”, conta.

 A mãe relata as dificuldades que teve ao tentar acompanhar as exigências físicas das aulas de dança. “A turma para adultos encerrou pela falta de alunos depois de um ano, então continuei treinando com uma turma iniciante de meninas mais novas, foi difícil”, lamenta. Ela relata que com o tempo aprendeu a respeitar mais o próprio corpo e a não se comparar com o ritmo dos outros. “Eu danço para ter um momento para mim, porque eu amo, não para ser uma bailarina profissional”, afirma.

 Glaucia relembra feliz os espetáculos de balé que dançou com sua filha. “Ter ela me apoiando e tendo tanto orgulho de mim quanto eu tenho dela foi muito importante para me incentivar a continuar”, conta. Ela fala que ser mãe foi o que a conectou com a dança e agora ambos são partes essenciais em sua vida. “Enquanto eu puder vou continuar dançando, e de preferência, com minha filha ao meu lado no palco”, finaliza.

 Sara Freitas, de 30 anos, iniciou sua trajetória na dança aos 25 anos, antes disso não dançava em uma frequência mais intensa. Ela foi professora de educação infantil por oito anos e diz ter grande amor por crianças. Sara não é mãe, mas planeja engravidar em um futuro próximo e tem certeza que isso vai influenciar sua rotina de dança e adaptação incerta com o corpo pós parto, “O corpo muda completamente, existe uma adaptação tanto na rotina da criança como também uma adaptação com o corpo”, comenta Sara.

 A dançarina se preocupa com o futuro, em como pode ser o retorno na dança. “Isso me assusta bastante, porque dançar para mim é algo muito importante, então pensar em parar de dançar, dar uma pausa sabe se lá de quanto tempo, e viver essas mudanças, é um pouco assustador”, lamenta. Sara sente que tem adiado a gravidez por conta de sua relação com a dança, mas afirma que mesmo após ter a criança, vai continuar a dançar. “Eu sei que vou voltar a dançar, talvez não na mesma frequência como agora”, finaliza.

 A dança na gravidez possui vários benefícios, como a oxigenação e a circulação sanguínea, ajudando tanto a mãe quanto o bebê. No pós-parto ela ajuda na recuperação do corpo e na reeducação do sistema musculoesquelético da mulher, aém de promover o retorno à vida social, trazendo momentos de diversão e conexão, e melhorar a saúde mental e autoestima das bailarinas.

Foto: Juliane Goltz.

 

 

 

 

Sangue Raro: distopia brasileira denuncia exclusão social através da fantasia

Livro de Lucas Santana é um grito contra a repressão e foi contemplado nos editais da Lei Paulo Gustavo de Pernambuco, por meio da Secretaria de Cultura do Estado

A literatura fantástica brasileira ganha novo fôlego com Sangue Raro, obra de estreia de Lucas Santana, autore não binárie pernambucane que transforma uma distopia urbana em um grito poético contra a repressão, a marginalização e a violência estatal. Ao construir um mundo onde pessoas com “sangue raro” são perseguidas e exploradas, Santana cria uma potente metáfora sobre o controle social, o autoritarismo e a resistência das minorias. O livro é resultado de um projeto contemplado nos editais da Lei Paulo Gustavo de Pernambuco, realizado através da Secretaria de Cultura do Estado com recursos da Lei Paulo Gustavo, direcionada pelo Ministério da Cultura — um marco que reforça o papel da política pública no incentivo à produção artística comprometida com a diversidade e a crítica social.

Autore do livro Sangue Raro, Lucas Santana. Foto: Arquivo pessoal de Lucas Santana

Na entrevista concedida para o Elos, Santana compartilhou como as ditaduras latino-americanas, a manipulação religiosa e as práticas contemporâneas de higienização social influenciaram diretamente sua ficção. “O sistema discrimina essas pessoas, mas ao mesmo tempo precisa delas. Isso é o que acontece com as minorias no capitalismo: somos bode expiatório e matéria-prima”, elucida.

Fantasia distópica como crítica à opressão estrutural

Sangue Raro se passa em um Brasil alternativo onde um Estado militarizado utiliza a mídia e a religião para construir um imaginário hostil contra indivíduos com um sangue especial — raro, precioso e ao mesmo tempo temido. A perseguição promovida pelo governo não é apenas pública: ela acontece nos bastidores, com sequestros, experimentações e tortura. Esses corpos, marcados como perigosos, são também os que fornecem a força vital para o próprio regime.

Essa ambivalência — rejeição e exploração — reflete dinâmicas vividas por pessoas negras, LGBTQIAP+ e periféricas na sociedade brasileira. “A metáfora do sangue raro serve para falar do que fazem com a gente: marginalizam, mas nos usam para sustentar o sistema”, afirma o autore.

Uma história marcada por dor, poder e resistência

No centro da narrativa está Caetano, morador do Morro da Conceição, em Recife, que desde a adolescência sente algo estranho crescer dentro de si — uma energia inominável que se espalha pelo corpo como uma febre silenciosa. Ele é um sangue-raro: seu sangue possui habilidades especiais, como localizar pessoas, tornando-se alvo do Estado. Em meio a uma ditadura que busca exterminar bruxos e sangue-raros em nome da “purificação nacional”, Caetano é capturado e utilizado como instrumento do governo, forçado a ajudar na perseguição de opositores políticos.

Após passar dez anos preso, ele consegue fugir. Do lado de fora, encontra um Brasil colapsado, em que o exército já não governa e o povo foi deixado à deriva — cidades alagadas, a natureza em fúria, o medo ainda presente. Ele cruza o caminho de Jorge, um bruxo que busca desesperadamente sua filha desaparecida — outra sangue-raro, poderosa como ele. Juntos, os dois encaram os escombros de um país destruído pela opressão, tentando decidir se vale a pena reconstruir ou apenas vingar. Caetano precisa confrontar sua culpa, seu passado e o próprio corpo — um corpo que o sistema tentou transformar em arma, mas que ele agora tenta reivindicar como território de luta e reexistência.

Corpo, território e divindade: interseções políticas e existenciais

O livro também propõe uma reflexão sensível sobre o corpo como campo de disputa. “O corpo da gente é um território”, diz Santana. “Querem dizer que corpo pode existir, que corpo tem valor. Isso vale para pessoas LGBTQIAP+, mulheres e pessoas negras. Nosso corpo está sempre em disputa, como a própria América Latina.”

A repressão descrita na narrativa se entrelaça com as estratégias de controle exercidas pela religião institucionalizada, especialmente em comunidades vulneráveis. A crítica à moralidade imposta aparece de forma contundente. “Igrejas se infiltram onde o Estado falhou, e oprimem os corpos que deveriam acolher. Isso é ferramenta de dominação”, comenta.

Carnaval como resistência: arte e comunidade contra o autoritarismo

Em contraste com a violência e a opressão, Sangue Raro exalta a arte popular como forma de resistência e sobrevivência. A presença do carnaval, especialmente o de rua nordestino, simboliza a força coletiva. “No livro, o alaúça é símbolo de poder popular. O carnaval aqui é democrático. É um lugar onde corpos dissidentes podem existir com liberdade.”

Lucas enxerga na arte um espaço de reconstrução da identidade e de acolhimento. “Quando eu era adolescente, não via personagens LGBTQIAP+ em livros ou filmes. A literatura precisa oferecer esses espelhos. Quero que leitores se sintam acolhidos e empoderados.”

Entre a ficção e o espelho: o Recife de Sangue Raro é distopia ou realidade encenada?

A distopia apresentada em Sangue Raro não soa distante — ao contrário, evoca um Brasil que já se reconhece em muitos aspectos da narrativa. O Recife criado por Lucas Santana, embora fantástico, ecoa elementos concretos da sociedade brasileira: repressão estatal, controle religioso, exclusão de corpos dissidentes e desigualdade estrutural. A fantasia torna-se, assim, uma lente de aumento sobre vivências reais de populações historicamente marginalizadas.

A perseguição aos sangue-raros, que possuem um sangue precioso e temido, ressoa como metáfora para o modo como o Estado lida com pessoas negras, LGBTQIAP+ e periféricas — rejeitando suas existências enquanto extrai delas força e produção. A distopia do livro se aproxima perigosamente da realidade: se não há ainda um regime declarado, há políticas e discursos que operam com lógica semelhante, usando o medo como ferramenta de dominação.

Ao colocar em cena um Brasil colapsado e um povo deixado à deriva, a narrativa convida à reflexão sobre o presente. As tensões que o livro expõe — entre poder e resistência, entre religião e controle, entre arte e sobrevivência — já fazem parte do cotidiano de muitas comunidades. Nesse sentido, Sangue Raro denuncia, mas também convoca: aponta para a importância da coletividade, da arte como refúgio e da resistência como forma de luta.

Representatividade e esperança para juventudes marginalizadas

O protagonista de Sangue Raro, Caetano, vive um apagamento forçado de sua identidade. Antes mesmo de descobrir seu sangue raro, ele já enfrentava exclusão por ser LGBTQIAP+. “A opressão começa cedo. Aprendemos a disfarçar quem somos com medo da violência”, explica o autore.

Mas o livro também é sobre pertencimento. “Mesmo em um mundo que te nega, há caminhos de afeto e resistência. Espero que quem já sofreu exclusão leia o livro e sinta que existe um lugar seguro para si”.

Com Sangue Raro, Lucas Santana entrega uma fantasia distópica que não apenas emociona e entretém, mas também questiona, denuncia e acolhe. Sua escrita evoca um Brasil real por meio do fantástico — um país marcado por desigualdades e resistências, onde a imaginação é ferramenta de denúncia e esperança.

É uma obra que mostra que, mesmo quando tudo ao redor tenta apagar quem somos, há força na arte, na coletividade e na reinvenção de si mesmo. O reconhecimento através da Lei Paulo Gustavo amplia ainda mais o alcance desta narrativa transformadora, destacando a importância de políticas culturais que valorizam vozes dissidentes e histórias que desafiam o status quo.

Por Maria Gallinea

Evento “Vozes Negras em Foco” abre com palestra sobre apropriação cultural

Historiadora analisa a apropriação cultural como mecanismo de opressão e esvaziamento de símbolos em palestra de abertura

Merylin Ricielli fala sobre apropriação cultural no Vozes Negras em Foco. Foto: Maria Gallinea

O evento Vozes Negras em Foco iniciou sua programação nesse último sábado (26), com a palestra de Merylin Ricielli, pós-doutoranda em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). A mediação foi realizada por Jane Aransiola, doutora em Linguística Aplicada pela Unicamp.

O evento surgiu em 2011 a partir de uma sugestão feita por uma professora da graduação de Aransiola. “Eu sentia falta da representação da cultura negra na cidade e graças a uma professora veio a inspiração de promover um espaço de diálogo e representatividade”.

Ricielli abordou o conceito de apropriação cultural a partir da obra Apropriação Cultural, de Rodney William. Segundo ela, a prática ocorre quando “grupos dominantes se apropriam de elementos culturais de grupos subalternizados”, resultando no esvaziamento de seus significados originais.

A palestrante explicou que o debate não se limita ao uso de símbolos como tranças, dreads ou turbantes, mas envolve a compreensão do valor histórico e cultural desses elementos. “A grande problemática é o esvaziamento do sentido e do significado”, afirmou.

Ela também destacou a relação entre apropriação cultural, capitalismo e globalização. Para Merylin Ricielli, a cultura, ao ser transformada em mercadoria, perde seu sentido original e passa a ter apenas valor comercial.

A palestrante chamou atenção para a existência de privilégios raciais e sua influência na apropriação de símbolos culturais. “Um indivíduo branco pode usar dreads e ser visto como estiloso, enquanto um indivíduo negro é seguido dentro de um banco”, exemplificou.

Merylin propôs que a análise da apropriação cultural considere três aspectos: conhecer a origem do elemento, avaliar sua necessidade de uso e identificar relações históricas de dominação.

Sobre a diferença entre apropriação e admiração cultural, a historiadora afirmou que a segunda exige conhecimento e respeito. Ela apontou que muitos atos de suposta admiração resultam na descaracterização e apagamento de tradições.

Durante a palestra, a historiadora citou exemplos locais, como a Festa Alemã de Ponta Grossa. Segundo ela, por mais de duas décadas, apenas mulheres brancas foram escolhidas como majestades do evento. A primeira mulher negra foi eleita recentemente, fato que evidencia as barreiras sociais e raciais na representação cultural.

Merylin Ricielli concluiu que a discussão sobre apropriação cultural deve ir além da escolha individual, considerando os impactos coletivos e históricos. “A apropriação cultural é parte de um processo de resistência e preservação da memória negra”, disse.

Eunice Novaes, participante do evento, reconhece a importância de temas que abordam o recorte de raça nas relações: “Eu enquanto mulher preta em uma cidade mais conservadora como Ponta Grossa não vejo tantas abordagens raciais. Sempre que tem eventos, movimentos voltados à essa discussão, eu participo”. Após a palestra, o evento prosseguiu com outras atividades voltadas à reflexão sobre as experiências negras no Brasil contemporâneo.

Texto por Maria Gallinea e Lorena Santana